“O silêncio está esquecido.” As palavras em francês chegam rarefeitas da casa do historiador Alain Corbin, com quem falamos por telefone a propósito do seu livro História do Silêncio, agora publicado em Portugal. Reparemos nele ou não, conseguimos pensar em circunstâncias em que o silêncio ainda ganha lugar: no quarto, à noite, na natureza, em momentos de amor, meditação, de ensino ou fé, de doença ou morte. “O silêncio é a ausência de ruído, sim, mas é muito mais do que isso. É uma forma de o indivíduo se ouvir, de se reencontrar.”

Se o silêncio é uma ausência (ainda que repleta de significado), percebe-se que seja difícil estudar um vazio. Como se escuta o silêncio? E mais: como se escuta o silêncio findo há séculos? Neste livro, a resposta é um retalho de citações, reflexões, pedaços de arte, poesia e literatura que nos falam sobre o silêncio – uma tentativa de evocar o silêncio passado, as suas texturas e a sua riqueza. O historiador assim quis fazer para que o leitor possa “mergulhar” nestas considerações e para que, “lendo-as, cada um ponha à prova a sua própria sensibilidade”. “A História pretendeu demasiadas vezes explicar”, escreve no livro.

Alain Corbin já escreveu sobre os ventos, o som dos sinos das igrejas, a erva fresca, a sombra, o descanso; também estudou a paisagem, o desejo, a ignorância. É um historiador das representações e das sensibilidades. Os seus livros “descentram o nosso olhar sobre o passado”, lê-se na nota biográfica do autor.




Alain Corbin: um intelectual dedicado à “história das sensibilidades”


DR

O silêncio é a ausência de ruído, sim, mas é muito mais do que isso. É uma forma de o indivíduo se ouvir, de se reencontrar



Alain Corbin



O silêncio é algo que existe, algo que se faz, algo em que se está. “A língua da alma é o silêncio”, escreve Alain Corbin. O silêncio tem várias origens – e não pressupõe um vazio sepulcral. “O deserto, o mar, a floresta eram os grandes templos do silêncio na literatura”, diz-nos na entrevista. Em algumas culturas, o silêncio era composto pelos pequenos sons da natureza. “O silêncio da noite, o som de um grilo, o som de uma rã.”

No prelúdio desta viagem pelo mundo silencioso, Alain Corbin escreve que, “no passado, os ocidentais desfrutavam a profundidade e o sabor do silêncio”. Era sinal de recolhimento, de oração, de admiração, de descanso, de meditação, devaneio ou criação – era o “lugar íntimo do qual a palavra emerge”. “Actualmente, é difícil ficar em silêncio, o que nos impede de ouvir a palavra interior que acalma e alivia.”

Depois, o historiador francês parte numa digressão pelos mundos em que cabe o silêncio – e onde é presença essencial. “A arte, o amor, a natureza, a religião… tudo isto é entrelaçado de silêncio”, diz na conversa telefónica com o Ípsilon. “A profundidade do amor é olharmo-nos em silêncio.”

Pinturas e cinema mudo

Alain Corbin acredita que é útil olhar para a literatura e para a arte para ouvir o silêncio que já cá não está. Henry David Thoreau afirmava que “só o silêncio é digno de ser ouvido”. Max Picard dizia que as coisas da natureza são como “reservatórios cheios de silêncio”. Nicolas Klotz garante que fazer silêncio “não é de modo algum a mesma coisa que calar-se”.


Autor: Alain Corbin

Tradução de Antonio Sabler

Editora: Quetzal Editores

16,60€, 152 págs.

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O dramaturgo belga Maurice Maeterlinck acreditava que há indivíduos “que não têm silêncio, e que matam o silêncio à sua volta; e esses são os únicos seres que passam realmente despercebidos”, já que “nós não podemos ter uma ideia exacta daquele que nunca se calou. Dir-se-ia que a sua alma não teve rosto”. A palavra, por vezes, sufoca e suspende o pensamento, “que só funciona no silêncio”, escreve Corbin.

O silêncio é sinal de respeito. Na corte de Bizâncio, refere o livro, havia até o cargo de “silenciário”, uma pessoa responsável por zelar pelo silêncio e pela ordem. Na mitologia grega, Harpócrates é o deus do silêncio e do segredo, representado com um dedo sobre a boca, um gesto que impõe o silêncio. A imposição do silêncio diz respeito a lugares privilegiados: as igrejas, as escolas, universidades e liceus, o exército, o teatro e o cinema. Na igreja, o silêncio é sinal de “autodomínio, de capacidade de dominar os ímpetos”, escreve Corbin. “A celebração do culto é ela mesma uma escola de silêncio.”

As referências também se estendem à pintura e ao cinema. Damos alguns exemplos: olhando para o quadro A Ilha dos Mortos, de Arnold Böcklin (1878), Alain Corbin diz que “o silêncio é sufocante, a própria barca que conduz à ilha é sua prisioneira. O quadro pretende ser tanto um símbolo do silêncio como da irrevogável morte”. E no cinema mudo o silêncio “é uma matéria, um dado sensível”. Como os filmes mudos eram acompanhados por música e legendas, há quem defenda que os verdadeiros silêncios se ouvem nos filmes sonoros.

Alain Corbin acredita que a nossa relação com a arte mudou. “O historiador Marc Fumaroli mostrou que, no século XVII, quando íamos ver pinturas, ficava-se em silêncio; hoje, se formos a uma exposição, vê-se uma fila enorme e vamos ficar incomodados pelo barulho de todos os outros espectadores”, diz por telefone. O silêncio também se vai adaptando ao longo do tempo e dos contextos. “Na minha altura falava-se nos aviões e nos comboios; hoje não”.

Foram várias as razões que levaram o historiador a debruçar-se sobre o silêncio, e uma delas foi o impacto que sentiu na sua infância. “Em criança, vivi os silêncios”, conta. Vivia perto das igrejas, locais de fé, e o silêncio era uma regra. Nas escolas e na faculdade também. Quando tinha 14 anos, visitou a abadia de La Trappe de Soligny e sentiu um “silêncio histórico” — e a obra do escritor François-René de Chateaubriand passada nesse mesmo mosteiro, Vie de Rancé, foi a porta de entrada para estudar o silêncio. Depois, começou a interessar-se pelas campanhas que existiram em tempos para regular e abolir o som dos sinos e o barulho dos cães.




A Ilha dos Mortos
Arnold Böcklin

A obra História do Silêncio foi lançada em 2016 em França, mas chega agora às livrarias portuguesas, numa edição da Quetzal com tradução de Antonio Sabler. Na capa, invocando o silêncio e o repouso (outro dos temas desenvolvidos pelo historiador) está A Siesta de Van Gogh. Alain Corbin conta-nos que escreveu o livro à mão, e o manuscrito foi posteriormente digitado para computador por Sylvie le Dantec. Quando lhe perguntamos sobre a forma como o silêncio pode ter sido aniquilado pela correria dos dias e pelos tentáculos perniciosos das redes sociais, o historiador responde: “Não sei. Sou completamente desconectado, não estou metido no presente. Nem tenho computador.”

O autor francês admite que o silêncio pode ter o poder de nos deixar inquietos (não mais que o barulho, ressalva), mas diz que é historiador e não quer falar do presente. Ainda assim, reconhece que “o silêncio hoje já não é muito praticado”, mesmo as crianças e os mais jovens “não gostam do silêncio”.


E refere também que não será tanto o alarido no espaço urbano que nos impede de apreciar o silêncio no presente. “O ruído da cidade, que se tornou outro, não é sem dúvida mais ensurdecedor que no século XIX”, afirma. “O essencial da inovação reside na hipermediatização, na permanente conexão e, por conseguinte, no incessante fluxo de palavras que se impõe ao indivíduo e que o levam a recear o silêncio.”

O silêncio da reflexão vem de dentro, mas o espaço em nosso redor ajuda a dar-lhe forma. No livro, o historiador debruça-se sobre o papel da casa e do quarto solitário, à noite, como forma essencial de apreciar o silêncio – o primeiro capítulo é sobre estes lugares. Em História do Silêncio, também encontramos o silêncio no deserto, na montanha, na oração, na pintura, no amor, no ódio e na agonia. De resto, os silêncios podem ter muitos outros significados: podem ser tácticos, de inércia, dúvida, ironia, retenção ou delicadeza.

Numa outra dimensão, Alain Corbin diz, na entrevista, que também “o animal é silêncio” – e talvez seja por isso que tanta gente goste dos seus animais de estimação. “O gato em particular sabe habitar o silêncio que parece simbolizar”, escreve no livro. Ao Ípsilon, o historiador (que nasceu na Normandia em 1936) recorda um episódio de quando tinha 23 anos, na sua terra natal: “Um dia, apoiei-me numa barreira enquanto esperava pelo autocarro e uma vaca chegou-se perto de mim e ficámos a olhar um para o outro durante um quarto de hora”, conta. “E garanto-lhe que o silêncio da vaca, os olhos dela… deixaram-me bastante comovido.”

Hoje, parece-lhe que estamos perante “o fim do silêncio” – mas vai encontrando vislumbres de quem ainda o tenta viver. Como podemos resgatar o silêncio das sombras? Primeiro, há que dar por ele. Reconhecer a sua existência. Depois, há que evitar distracções. Reaprender a estar em silêncio é essencial para o ser humano. Alain Corbin resume: “Se nos queremos encontrar a nós próprios e aprender a ser nós mesmos, o melhor é ir para o quarto e ficar em silêncio.”




Le Silence, de Joseph Ducreux