O ‘desembarque’ de 38 marroquinos na praia da Boca do Rio, no concelho de Vila do Bispo, Algarve, veio demonstrar a confusão reinante na área da fiscalização do território marítimo. As três entidades com competência, ou que ‘operam’, na fronteira delimitada pelo mar, não se entendem e não ‘gostam’ da existência umas das outras. A Marinha porque não tem qualquer competência para fiscalizar a entrada de imigrantes ilegais – só pode intervir no caso de alguém estar em perigo de vida ou que se sinta mal – ou combater o tráfico de droga. Para se perceber melhor, no caso dos 38 migrantes que chegaram na passada sexta-feira a solo português, caso a Marinha os tivesse avistado, seria obrigada a comunicar à GNR ou à Polícia Marítima. Não é crível que os tivesse visto, mas há quem assuma, como um antigo alto quadro da Marinha disse ao Nascer do SOL, que as três entidades não falam entre si.

Confundir Polícia Marítima com GNR
A confusão é tanta que os próprios meios de comunicação social deram informações contraditórias, tendo alguns escrito ou dito que a Polícia Marítima foi a primeira a chegar ao local. Não foi. Depois de alertada por um empresário local, quem chegou primeiro foi a GNR. E aqui dá-se outro facto curioso: ambas as ‘forças’ têm a mesma competência. Para se seguir o fio à meada, é preciso dizer que a seguir entrou em ação a PSP, que tem, agora, a competência dos centros de instalação temporários. Antes disso, a GNR ouviu os migrantes e fez os relatórios, mas só a Polícia Judiciária é que tem competência para fazer investigação criminal no que diz respeito ao auxílio à imigração ilegal ou ao tráfico de seres humanos. Isto é, só a PJ pode apurar se estes migrantes foram ‘escravizados’.

É um pouco confuso, e é melhor não falar nos organismos que podem e devem intervir se o caso for mais grave – se Portugal se debatesse com uma situação idêntica à de Itália, por exemplo, o Sistema de Segurança Interna entraria em ação, mas antes já outros organismos teriam dito de sua justiça.
«Eles não falam uns com os outros. A GNR não fala com a Polícia Marítima, nem com a Marinha, e a Marinha e a Polícia Marítima não falam com a GNR.

A Polícia Marítima e a Marinha falam razoavelmente porque têm um centro de operações em que há representantes das duas componentes. É o centro de operações marítimas. Mas é incrível como a GNR e a Polícia Marítima ou a Marinha não partilham informações e não há um panorama comum para toda a gente. São capelas autênticas, que ainda retiram mais rentabilidade ao processo. Porque, se calhar, há informação que só uns têm e informações que só outros têm. E se estivesse tudo somado, podíamos ter uma imagem muito mais clara daquilo que se passa na nossa costa. O Estado não se impõe e as capelas vão funcionando de acordo com as orientações dos superiores», diz um ex-oficial da Marinha.

É óbvio que a GNR nunca foi muito bem aceite pelas forças armadas e desde que «há 19 anos foi para o mar, ficou tudo baralhado. O centro Nacional Coordenador Marítimo, criado na primeira década de 2000, chegou a integrar 17 organismos, mas nunca funcionou, nem funciona, convenientemente», acrescenta a mesma fonte.

O que disse Henrique Gouveia e Melo
Para se perceber até que ponto a questão de ser a GNR a controlar o mar é controversa, vejamos o que disse o então Chefe de Estado-Maior da armada, Henrique Gouveia e Melo, em abril de 2024, quando questionado sobre o que pensava de a GNR ter competências marítimas. «Como português que paga os seus impostos, considero que estes devem ser gastos da forma mais eficiente e eficaz.

No mar o modelo de atuação, pela própria natureza dos atores (vestefalianos e não vestefalianos), dos fenómenos (humanos e naturais) e das atividades (económicas, políticas, militares, criminais, lazer e outras) apresentar-se-á como essencialmente transversal e abrangente. O mar liberum é poroso por natureza, sem um controlo efetivo, nele coexistem e cruzam-se todos os tipos de atividades humanas e todo o espetro de interesses. Uma marinha mais fechada, concentrada só na atividade militar, não poderá compreender o ambiente marítimo onde opera, na sua totalidade, e sofrerá de uma cegueira seletiva, contrária aos próprios interesses do Estado.

Por outro lado, países de pequena dimensão e poder vêm-se confrontados com a impossibilidade de sustentarem diferentes marinhas, cada uma com um foco específico numa parte da atividade marítima. A par dessa dificuldade expressa, a multiplicação de atores estatais, com responsabilidades sobre o mar, poderá contribuir para uma atuação mais incoerente e dificilmente sincronizada. Mesmo organizações poderosas como a NATO estão a mudar a forma com encaram a atividade militar nos espaços marítimos, para modelos idênticos ao da Marinha de duplo-uso, militar e não militar, face as novas estratégias e táticas híbridas usadas por atores estatais ou grandes grupos criminosos».

GNR faz leitura diferente
César Nogueira, presidente da Associação dos Profissionais da Guarda (APG), tem uma opinião literalmente oposta à do almirante candidato a Belém. «A nossa posição sobre as Forças Armadas estarem envolvidas com órgãos de polícia criminal, só por si já é errado, por isso é que nós tivemos longos anos contra termos oficiais generais do Exército a comandar a GNR. O mesmo se passa com a Polícia Marítima que quem comanda é um militar da Marinha, um oficial, um almirante. Isso só por aí já é errado, confundirmos a Defesa com a Segurança. Quando se mistura a Defesa com a Segurança alguma coisa não vai bem, porque isso já é perigoso. Não é por nada, só que a própria formação não é igual, porque as Polícias são formadas para que mesmo que do outro lado esteja um criminoso um assassino, seja o que for, não deixa de ser um cidadão com direitos. O militar das Forças Armadas, e posso falar até porque já o fui – continuo sendo militar, mas de uma polícia, da GNR -, tem uma formação que é para combater o inimigo, abater o inimigo, que é assim que se faz, é essa a formação de um militar, não é de o deter, de o maniatar e levá-lo a um tribunal. É de o abater porque só assim é que consegue ganhar guerras, por isso a própria formação só por si já é totalmente diferente e quando se começa a misturar é perigoso. Esta sempre foi a posição da APG».

PSP entra em ação
São muitos os intervenientes que não estão de acordo com o antigo Chefe de Estado-Maior da Armada, e as razões são várias. A PSP, por exemplo, que controla a entrada de 91% dos cidadãos extracomunitários, não entende a razão para ter ficado com quase todas as competências na fiscalização das fronteiras aeroportuárias e não ter a capacidade de fazer investigação criminal sobre o auxílio à imigração ilegal e ao tráfico de seres humanos.
Bruno Pereira, presidente do Sindicato Nacional dos Oficiais de Polícia (SNOP) entende que a GNR deve ser responsável pelo controlo marítimo, «porque já tinha competências de Unidade de Controlo Costeiro, e é bom do ponto de vista de maximização das capacidades do sistema». Mas Bruno Pereira tem ideias muito claras sobre o controlo das fronteiras. «Quando se decidiu pela extinção do SEF defendi que toda a competência de fronteira devia ficar na PSP para que efetivamente se mantivesse, como digo, uma gestão integrada do controlo de fronteiras. Precisamente daquilo que são as atividades de especialização dentro do território, dentro do espaço do território nacional.

Agora, o controlo de fronteira devia ter um ponto centralizado de controlo. Uma única organização que controlasse a totalidade daquilo que é a ação de fiscalização na fronteira extra Schengen. Portanto, fronteira extracomunitária. E isto não ficou assim».

O líder dos Oficiais da PSP vai mais longe: «Do ponto de vista do controle de fronteira entre entradas ou não dentro do espaço Schengen, esse devia ser totalmente controlado por uma única polícia de fronteiras, e não é. Ainda que também seja verdade que a PSP ficou com a fatia de leão, porque 91% dos cidadãos extracomunitários entram por onde? Pelos aeroportos. Sendo que os 9% restantes que entram pelos portos, que é um universo que não tem a mesma avaliação de risco. Porquê? Porque estamos a falar maioritariamente de pessoas que vêm em paquetes».

Velhinhos não assustam
Bruno defende melhor a sua dama: «No limite, aqueles que possam constituir um risco maior, barcos, pescadores e outro tipo de embarcações, esses sim, são merecedores de uma atenção diferenciada, mas os paquetes de passageiros, o controlo pode ser feito a montante, até porque a maior parte da população que vai nos paquetes não é de risco. A pressão verdadeiramente da fronteira é nos aeroportos, não é de mais de lado nenhum».

Uma costa agreste para migrantes
Ao longo dos anos, não têm chegado, que se saiba, de barco muitos migrantes ilegais. O Expresso fez um balanço que dava conta de que nos últimos cinco anos chegaram 147 pessoas por barco. A GNR, que tem a jurisdição sobre as praias, e que alegadamente possui um dos sistemas de vigilância mais avançados, não forneceu dados, remetendo-nos para o Relatório Anual de Segurança Interna. Bruno Pereira dá a sua visão para termos poucos imigrantes a chegarem de barco: «A nossa fronteira marítima é com o oceano Atlântico. É tão simples quanto isto. A ligação entre África e Portugal é muito, muito, muito perigosa para os migrantes. Os migrantes que chegaram deviam ser ‘briefados’, entrevistados, além, pois, obviamente, de tudo aquilo que é assistência médica. Mas do ponto de vista policial, a informação deve ser processada. Para quê? Para que haja um despiste de naquele próprio grupo haver alguém que normalmente é o responsável pela passagem, que está ligado a organizações de auxílio à imigração ilegal, normalmente residentes do país de origem, outras vezes não. Normalmente, são os angariadores que recebem um pagamento para a travessia e isto acresce ou agrava-se quando nós temos migrantes que têm que atravessar vários países. São obrigados a ter que pagar uma dízima em cada país que atravessam.

Estou a falar do ponto de vista da avaliação do tráfico do auxílio à migração ilegal. Por exemplo, pessoas que vêm da Somália, têm que atravessar o Sudão, têm que atravessar vários países. Normalmente, há alguém que no país de origem é angariador. Diz: ‘Olha, queres ir para a Europa?’ E ele diz: ‘Quero’. ‘Então tens de me pagar X a mim, depois vais ter que levar dinheiro para pagar X àquele, e depois tens de pagar mais não sei quanto, porque temos de passar o Sudão, e temos de passar a Líbia, e depois ainda tens de pagar ao homem do barco’. Todos eles ganham. Isto é uma rede montada do auxílio à migração ilegal. Agora, temos ainda outras situações, que é muitas vezes ter já uma ligação entre esses traficantes, do auxílio à migração ilegal, com traficantes de seres humanos cá. São pessoas que estão cá implantadas para os receber já com um destino traçado para eles, para trabalhar, por exemplo, ou em redes de prostituição, se forem mulheres, ou em redes de escravatura doméstica, ou trabalho forçado nas famosas quintas do Alentejo, ou para virem mendigar – também há redes de mendicidade forçada. Portanto, temos aqui toda uma série daquilo que chama exploração, escravidão, de pessoas que vêm numa condição muito vulnerável, e que chegam a um sítio onde não tem nenhum suporte. Por isso é que normalmente quem faz a fiscalização e o controle e o encaminhamento devia também ter a capacidade naturalmente para fazer a investigação criminal quando haja responsabilidade criminal a atribuir».

Também uma fonte da Marinha disse ao Nascer do SOL que é natural que a rota de Portugal comece a ser mais procurada, até porque «agora já começam aqui a ter em terra alguma representação, será mais fácil até encontrar abrigo em pessoas conhecidas ou famílias».