Assim que o júri da competição de curtas-metragens Leopardos de Amanhã subiu ao palco, o tom da cerimónia de entrega de prémios da edição 2025 do Festival de Locarno ficou dado. “Não à desumanização”, “não ao genocídio”, sim à solidariedade com a população palestiniana martirizada pela destruição de Gaza, reclamou-se esta tarde. Mas não só. O georgiano Levan Galbakhian, actor premiado na secção paralela Cineastas do Presente, recordou a repressão na Geórgia às manifestações pró-Europa. A argentina Cecilia Kang, ao receber o prémio de realização na mesma secção, citou a destruição do cinema argentino às mãos do governo de Javier Milei; e o presidente do júri do Concurso Internacional, o cineasta cambojano Rithy Panh, que sobreviveu aos anos do Khmer Vermelho, lembrou a Ucrânia, o Congo, o Sudão e tantos outros países sem sossego.
No entanto, e contra tão activista pano de fundo, o Leopardo de Ouro desta edição foi para o filme Two Seasons, Two Strangers, do japonês Sho Miyake. Separando a política e o cinema, o júri presidido por Rithy Panh, composto ainda pelas actrizes Renée Soutendijk e Ursina Lardi, pela produtora Joslyn Barnes e pelo realizador Carlos Reygadas, optou por dar o prémio máximo a uma narrativa de esperança e simplicidade sobre encontros casuais que podem mudar uma vida.
Ao receber o galardão, o realizador japonês confessou que ele próprio se perguntou como é ainda possível filmar uma história assim, hoje. Mas fê-lo, e não nos surpreenderia que tivessem sido a humildade e a modéstia deste “pequeno filme” a levar o júri a dar-lhe o Leopardo de Ouro.
Terá também sido essa mesma ideia de fugir ao óbvio a justificar a dupla premiação ao decepcionante White Snail, da dupla austro-alemã Elsa Kremser e Levin Peter, sobre dois outsiders na Bielorússia dos nossos dias. O filme levou dois Leopardos de Prata: o Prémio Especial do Júri e um dos dois prémios de interpretação, entregue ex-aequo a Marya Imbro e Mikhail Senkov, não-profissionais representando versões de si próprios. O segundo prémio de interpretação foi também atribuído ex-aequo, à chilena Manuela Martelli e à croata Ana Marija Veselcic, por God Will Not Help, de Hana Jusic.
O júri achou por bem, ainda assim, premiar o mais premente dos documentários desta edição: Tales from the Wounded Land, o olhar “na primeira pessoa” sobre um sul do Líbano destruído depois de dois meses de guerra entre o Hezbollah e Israel. Abbas Fahdel, que terminou de rodar o filme em Março último, recebeu comovido o Leopardo de melhor realização na presença da esposa e da filha, com a estatueta felina a recordar-lhe um dos gatos que perdeu nos bombardeamentos israelitas, e agradeceu aos jurados por terem reconhecido o papel da mise-en-scène no cinema documental.
Se os títulos mais “radicais” e/ou inventivos ficaram de fora do palmarés (Abdellatif Kechiche, Fabrice Aragno, Kamal Aljafari ou Radu Jude saíram “de mãos a abanar”), houve ainda assim a consolação de uma menção especial para Dry Leaf, do georgiano Alexandre Koberidze (ganhador igualmente do Prémio FIPRESCI, atribuído pela Federação Internacional de Críticos).
Já na paralela Cineastas do Presente, o Leopardo de Ouro foi entregue àquele que era o título mais unânime da selecção: Hair, Paper, Water…, co-assinado pelo belga Nicolas Graux e pelo vietnamita Truong Minh Quy, subtil documentário ensaístico sobre uma avó da etnia rural Ruc que viaja a Saigão para ajudar a filha que acabou de dar à luz.