Em 2022, o podcast ‘A Mulher da Casa Abandonada’, do jornalista Chico Felitti (e publicado pela Folha de S. Paulo), ganhou atenção nacional ao expor o caso de uma empregada doméstica que viveu em condições análogas à escravidão nos Estados Unidos após ter sido levada do Brasil pelo casal Margarida e Renê Bonetti.

Tudo começou quando Chico passou a buscar mais informações sobre um casarão abandonado em Higienópolis, um dos bairros mais ricos de São Paulo. Vizinho do local, Felitti descobriu que a mansão em pandarecos era onde Margarida residia.

Depois da repercussão estrondosa do podcast, ‘A Mulher da Casa Abandonada’ vira um documentário, que estreou nesta sexta, 15, no Prime Video. 

Dividida em três episódios, a nova série é dirigida por Katia Lund, que também atua como produtora executiva. Além dela, também dirigem os episódios Livia Gama e Yasmin Thayná, com produção de Gil Ribeiro, Marcia Vinci e Margarida Ribeiro, da Coiote, e roteiro de Tainá Muhringer, Fernanda Polacow, Henrique dos Santos, Mari Paiva e Karolina Santos. Além de todos eles, Chico Felitti também atua como consultor criativo e produtor executivo.

Desta vez, com uma entrevista exclusiva com Hilda Rosa dos Santos, a emprega doméstica que foi vítima do casal Bonetti. Confira as revelações de Hilda ao documentário! 

A história começa em meados da década de 1970, quando Margarida e Renê se casam. Pouco depois, como o marido foi contratado por uma empresa que faz foguetes e satélites pela NASA, eles acabam se mudando para os Estados Unidos, em Montgomey Village, Maryland. 

Dos pais de Margarida, o casal ganha como “presente” a empregada doméstica Hilda Rosa dos Santos — brasileira, negra e analfabeta — para servi-los no novo endereço. 

Em ‘A Mulher da Casa Abandonada’, do Prime Video, Hilda fala que, quando chegou com os Bonetti aos Estados Unidos, foi muito bem tratada pela família. “A gente aí comia bem, dormia bem e tava tudo calmo, tudo sossegado e tudo mais”. 

Por serem muitos religiosos, a família passou a frequentar uma igreja local e até mesmo levaram a doméstica para ser batizada. “Logo quando eu cheguei aqui, eles logo procuraram onde eu poderia me batizar”. 

Mas não demorou muito para que os Bonetti se desentendessem com o grupo. Renê e Margarida também eram muito reservados e pouco comunicativos. 

Renê Bonetti estava se mantendo isolado porque ele tinha um segredo a esconder”, narra o agente do FBI Don Neily. “Hilda Rosa dos Santos era uma escrava dos Bonetti”.

Conforme narrado em ‘A Mulher da Casa Abandonada’, na casa dos Estados Unidos, Hilda passou a viver no porão do local. O espaço não tinha mobílias e muitas vezes a empregada doméstica teve que dormir no chão.

Ainda assim, à Felitti, Margarida Bonetti se defendeu sobre o fato. “Ela tinha o porão inteiro pra ela. Ela tinha o andar inteiro pra ela. E o porão lá nos EUA, que eles chamam de basement, é o lugar onde os jovens ficam. Os jovens têm seu quarto lá. Não é um porão qualquer”.

A doméstica, por sua vez, expôs as condições insalubres do espaço destinado a ela. “Eu não tinha um banheiro para tomar banho. Não tinha nada lá. Não tinha água quente, não tinha coisa nenhuma”.

“Era só pra pôr minha cama aí, era o lugar onde dormir. Então, eu falava que isso tava mal lá no porão. Tinha lugares em que eu não podia pôr minha cama, que eu não podia chegar e encostar a cama na parede, a cama tinha que ficar mais pro meio, porque a maior parte da parede toda era úmida”. 

A caminha tinha umas pontas que levantavam pra cima e aquilo me pegava no corpo, então, eu pegava um monte de jornal e forrava tudo em cima dessa coisa toda, pra poder pôr o colchão por cima. E ali passava mais ou menos”. 

Os Bonetti também colocaram um sistema de alarme no quarto de Hilda, que era acionado por um botão no quarto de Margarida. Assim, sempre que ela precisava de algo, era só acionar o botão para alertar a ‘empregada’. 

Podia ser a qualquer hora da noite, não dava muito tempo essa história. Aí, quando eu começava a sentar na minha cama, ela tocava”.

Segundo os agentes que investigaram o caso de escravidão contra Hilda, os vizinhos relataram que a empregada doméstica parecia passar o dia inteiro trabalhando, sem pausas. 

Hilda atualmente – Prime Video

Hilda também ficava incumbida de fazer trabalhos braçais e que não deveriam ser feitos por ela, como cavar um buraco para a abertura da tubulação de gás da casa — que ia do gás para o fogão. 

Era pra furar um buraco desde essa esquina aqui até a esquina aqui da parede. E o buraco tinha de ficar… Minha cabeça tinha que ficar abaixo do buraco”, explica. 

Os vizinhos dos Bonetti perceberam que além da doméstica trabalhar ininterruptamente, ela também apresentava ferimentos em seu corpo. “A Hilda foi na casa deles, em várias ocasiões, mostrando hematomas, mostrando ferimentos. Eles [vizinhos] a viam trabalhar intensamente”, corrobora Neily.

Outra preocupação das pessoas que moravam próximas a Renê e Margarida era a forma que Hilda se alimentava. “Era só arroz”, ela relatou a um dos vizinhos do casal.

Ela [Margarida] agarrou briga comigo por causa da geladeira, porque eu que estava comendo todas as coisas da geladeira, as coisas da geladeira desapareciam todas, que não sei o que… E o esposinho dela, querido, um doce de homem, né? Foi lá no mercado e comprou um cadeado. Ai ele prendeu as duas portas da geladeira e deu a chave para ela. Aí sossegou”.

Com a situação, Hilda passou a ir de porta em porta para pedir comida e roupas aos seus vizinhos. Foi quando a situação se tornou ainda mais alarmante. Os moradores, inclusive, ajudaram a Hilda a fazer cartazes para que ela pudesse pedir roupas e mantimentos para outras pessoas — visto que ela não sabia falar inglês. “Quando eu saía com um cartão, quando eles não tinham roupas, eles davam dinheiro”.

Hilda relata que foi juntando esse dinheiro em um buraco de algodão na parede do porão. “Eu fazia um pacotinho do tal do dinheiro e enfiava lá dentro do algodão”.

Após juntar uma boa quantia, a doméstica levou todo o dinheiro até a casa de uma vizinha para comprar uma passagem de volta ao Brasil. “Faltavam apenas 25 dólares pra dar o dinheiro pra mim ir embora para o Brasil”. 

“Ai eu cheguei contente, peguei o dinheiro e pus no mesmo lugarzinho onde estava, tudo bem guardadinho. E, bom, continuei a trabalhar na casa. E quando foi lá pras seis, sete horas da noite, eu estava cansada e tudo mais, falei assim: ‘Vou descer pra baixo, pro meu quarto’. Quando eu olhei, assim, estava um buraco mal fechado e um monte de algodão no chão”.

Eu não sabia que a danada da satânica estava tomando conta de tudo. Aí, eu enfiei a mão lá dentro, não tinha um tostão. Para nada”.

Hilda conta que Margarida pegou um monte de nota e falou para seu esposo: “Renê, Renê, Renê, agora você tem dinheiro”.

Enquanto trabalhava para os Bonetti, Hilda passou a enfrentar sérios problemas de saúde, como um ferimento em sua perna. “Quando eu notei eu mesma, eu estava com essa perna aqui bem inchada. Eu não podia nem caminhar com a perna, nem nadam e a ferida saía muita água”. 

Apesar de sua condição, Hilda não recebeu auxílio imediato dos Bonetti, que sequer se prestaram a levá-la numa farmácia ou comprar algum tipo de medicamento.   

Don Neily conta que a doméstica estava com uma infecção na perna, o que dificultava sua locomoção. Mas como Hilda não tinha cobertura de plano de saúde, os Bonetti demoraram a fazer algo. “Ele [Renê] não queria gastar com isso. Ele não queria tratá-la como família. Ela estava muito abaixo disso”. 

A Casa Abandonada em São Paulo – Prime Video

Hilda também sofreu com uma série de agressões físicas por parte de Margarida Bonetti. Como quando Margarida não gostou de uma sopa que ela havia preparado, e jogou o caldo quente no rosto da doméstica. 

Eu fiquei com um ódio, mas um ódio que doía, sabe? Aquela vontade: Se eu tivesse dinheiro na mão, pegava um avião e se mandava pra trás”, conta Hilda sobre o episódio.

Se não bastassem as dores da infecção na perna, Hilda também desenvolveu fortes dores abdominais, o que reduzia ainda mais sua mobilidade. Logo, descobriu-se que a doméstica tinha uma espécie de uma “grande bola” na região de sua barriga. 

Renê só a levou a um médico após a situação de Hilda ser reclamada por um de seus vizinhos. No centro hospitalar, a equipe médica alertou a condição do abdômen de Hilda, alertando que ela precisaria passar por uma intervenção cirúrgica. 

“O médico falou assim: ‘Não, eu preciso chamar a atenção do Renê. Porque ele trouxe você por causa da perna e a sua barriga está pior do que perna. Isso é uma coisa que precisava de operação já”. 

Sabendo que após Hilda fazer a cirurgia, ela não conseguiria mais subir e descer a escadas do porão para acessar a casa, Renê fez um buraco no chão do ‘quarto’ da doméstica para a instalação de um vaso sanitário. 

Até então, não se sabia a gravidade do tumor que Hilda tinha: se era maligno ou não. Ainda assim, em nenhum momento Renê Bonetti considerou fazer a operação na doméstica e deixá-la conviver com a família no andar de cima da casa. Hilda ainda continuava a trabalhar incansavelmente para a família, apesar de suas limitações de saúde. 

Teve até uma vizinha que comparou a aparência da Hilda como uma pessoa que estava sempre grávida. Que estava grávida e nunca dava à luz”, narra Felitti na série. 

No final do ano, como de costume, os Bonetti voltaram ao Brasil durante três a quatro meses para passar o período de férias no país. Hilda, porém, era deixada sozinha na casa dos Estados Unidos. 

A saúde de Hilda só começou a ser cuidada neste período, quando os vizinhos perceberam que ela estava sozinha na residência e a levaram para ser tratada num centro médico em Washington D.C, sob os cuidados de uma freira católica. 

Ela me levou ao hospital, a Irmã Manuela, e o doutor me examinou da cabeça aos pés. Aí o doutor falou para a Irmã que eu precisava ficar no hospital. Que eu não ia mais voltar para casa. E não sabia se eu ia voltar para casa viva, ou como”. 

A médica e feira Irmã Dede Byrne, que cuidou de Hilda, disse que a doméstica tinha uma massa considerável em sua barriga. “O tumor era muito grande e foi negligenciado… Chegou ao tamanho de cerca de 12 centímetros”. 

Caso se tratasse de um tumor maligno, ou seja, canceroso, a condição poderia ser fatal para Hilda. Além da cirurgia para a retirada do tumor, a doméstica também passou por uma intervenção para reparar sua hérnia.

Mesmo encamada, Hilda foi resistente ao chamar a polícia para denunciar os maus-tratos que sofria dos Bonetti — que ainda estavam fora do país. Após ser acolhida por uma freira, Hilda concordou em contactar o FBI. 

A acusação contra a família foi feita no verão de 1999. Com o caso em andamento, Margarida Bonetti deixou os Estados Unidos e voltou para o Brasil.


Fabio Previdelli

Jornalista de formação, curioso de nascença, escrevo desde eventos históricos até personagens únicos e inspiradores. Entusiasta por entender a sociedade através do esporte. Vez ou outra você também pode me achar no impresso!