Pode uma cidade renegar as raízes e tornar-se noutra coisa qualquer? É bem possível. Depende é do que se entende ser a matriz a partir da qual se fará a avaliação da dimensão dessa mudança. João Peste tem idade suficiente para se recordar de uma Lisboa onde, sob a capa de uma certa sisudez, sempre se encarou a proveniência diversa dos seus habitantes como algo natural. Heterogeneidade cultural a integrar-se num corpo em constante mutação fazem da capital portuguesa um lugar especial, defende o cantor, que a 9 de Setembro completará 63 anos.
E é assim que a gostava de a ver no futuro, apesar dos muitos desafios e de tantos medos. “A nossa tradição é multicultural. As origens distintas das pessoas é que fazem Lisboa culturalmente interessante. Espero que assim continue, assimilando todas essas diferenças”, professa o vocalista dos Pop Dell’Arte, grupo que fez da heterodoxia característica essencial para revolver o vocabulário pop-rock português dos anos 1980 e fazê-lo evoluir.
“Estávamos a continuar uma tradição de diversidade e de vanguardismo, de arriscar, que esta cidade sempre teve”, recorda o artista, evocando uma época em que, a partir do bairro de Campo de Ourique, a banda se inseriu numa movida de renovação da música popular urbana. O que, no fundo, considera, se integrou num contínuo de busca por coisas novas, como costuma acontecer nos sítios onde chegam pessoas vindas de proveniências muito distintas, em busca de uma vida melhor.
“Sou completamente alfacinha. O meu pai era madeirense e a minha mãe meio alentejana e meio ribatejana, mas nasci aqui e sempre tive essa ligação forte à cidade”, diz Peste, evocando memórias de uma época muito diferente da actual e ainda a ecoar imagens cristalizadas de uma cidade do início do século passado. “Havia um carvoeiro na rua onde viveu o Fernando Pessoa nos últimos anos da sua vida e que conviveu com ele. Ainda me lembro muito bem de falar com ele”, recorda sobre a sua juventude na década de 70.
Uma reminiscência a beber de uma era que, aos olhos de hoje, parece remota, mas na qual Peste identifica uma linhagem e a que reclama pertença. “Tentámos criar um caminho novo, algo diferente. Se o conseguimos ou não, isso fica para outros avaliarem. Mas sentimos que estávamos a fazê-lo”, conjectura João Peste, integrando esse gesto artístico numa bem mais antiga postura de irreverência estética adoptada por alguns segmentos da sociedade lisboeta.
“Esta sempre foi uma cidade muito diversa, com grande riqueza cultural, capaz de gerar dinâmicas de vanguarda e novas correntes”, diz, apontando como exemplos o movimento modernista surgido em torno da revista Orpheu, no início do século XX, ou, um pouco mais tarde, o surrealismo português, interpretado por nomes como Mário Cesariny e Alexandre O’Neill.
“Olho para a cidade sem nunca perder de vista a sua identidade cultural, que faz parte da sua matriz. Ultimamente, têm-se ouvido muitos disparates, com pessoas a dizerem ‘vamos salvar Lisboa do multiculturalismo’. Mas Lisboa sempre foi uma cidade multicultural”, afirma, ensaiando uma crítica ao que vê como uma tendência negativa, agravada nos últimos anos. “Há um discurso algo xenófobo, contra os que vêm de fora”, constata, antes de sublinhar a importância das recentes palavras da escritora Lídia Jorge sobre a origem etnicamente diversa dos portugueses.
“Vejam-se as origens da cidade, os povos que a formaram, dos fenícios, aos gregos, mais tarde os romanos e todos os outros que vieram com a expansão marítima. Lisboa sempre teve árabes e judeus. Tem uma identidade que foi sendo desenhada por essa diversidade de modos de vida e culturas. Gostava que assim se mantivesse”, diz, lamentando o que vê como as tentativas de rasurar a identidade multíplice, substituindo-a por uma ditada estritamente pelos interesses imobiliários internacionais. “A gentrificação é que é verdadeira ameaça a Lisboa, não os imigrantes”, conclui o vocalista dos Pop Dell’Arte.