Hoje chove muito menos numa zona que deixou de ser economicamente interessante. Mas isso é apenas parte da explicação para o problema
O século XXI em Portugal tem assistido a um aumento constante de megaincêndios e o período de 2020 a 2023 teve quase tantos incêndios como todo o período de 2000 a 2019. De acordo com o portal floresta.pt, de 2000 a 2009 registaram-se 11 megaincêndios; de 2010 a 2019 registaram-se 16 e de 2020 a 2023 registaram-se 24 megaincêndios, que são fogos que consomem uma área que supera os 10 mil hectares.
“Temos uma floresta que, em muitos sítios, deixou de ser gerida”, afirma Filipe Duarte Santos, professor catedrático de Ciências do Mar e do Ambiente na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. “Deixou de ser gerida de uma forma sistemática por questões socioeconómicas”, acrescenta o também presidente do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável (CNADS), que aponta o êxodo rural como um dos principais fatores para o aumento de megaincêndios, uma vez que a floresta “acumula biomassa” – “plantas, herbáceas e pequenos arbustos, que depois ardem com grande facilidade” – com a “ida da população para zonas costeiras”.
A este, junta-se outro fator: “um clima diferente”. O presidente do CNADS considera que o clima é uma das principais razões para o aumento de megaincêndios no século XXI: “Temos um clima mais quente e, portanto, temperaturas médias anuais mais altas e mais ondas de calor. Por outro lado, uma diminuição da precipitação média anual. Chove menos do que chovia nos anos 40 e 50 do século XX e, em geral, do que no século XIX. E quando chove, chove com grande abundância, causando inundações”. O que faz retornar o professor catedrático à biomassa acumulada nas florestas, que está “muito seca, com muito pouca humidade no ar e no solo, porque este ano choveu no inverno, mas depois não choveu mais, praticamente”.
Filipe Duarte Santos olha ainda para as razões de uma deslocação da população para o litoral e para ainda mais questões que ajudam a explicar o aumento do número de incêndios que lavram um área igual ou superior a 10 mil hectares: “As pessoas vão agora para as zonas costeiras do território porque não têm as condições de vida que desejavam ter, em termos de rendimento, no interior do país. No passado, a população fixava-se no interior do país pela via da agricultura e da pecuária. Em termos sociais, só pela presença de uma maior densidade populacional nas florestas e no espaço rural, estas zonas do território tinham mais acompanhamento das populações. No que diz respeito à atividade agrícola e pecuária, a limpeza dos terrenos era feita pelas próprias atividades: o gado comia a tal biomassa que se acumula nas florestas atualmente e, por isso, não restavam grandes quantidades de pastagem que pudesse arder”.
Embora a área de cerca de 4,8 milhões de hectares usados para explorações agrícolas tenha aumentado desde 2007, diminuiu face aos mais de 5 milhões de hectares em 1999, de acordo com os dados do Gabinete de Planeamento, Políticas e Administração Geral (GPP) referentes a Portugal Continental. De acordo com a mesma fonte, durante o mesmo período, a área utilizada para culturas temporárias passou de cerca de 1,4 milhões de hectares para 744 mil hectares e o número de produtores agrícolas passou de cerca de 375 mil para cerca de 222 mil. Ainda no mesmo período, a população agrícola familiar passou praticamente para metade em Portugal Continental, de cerca de 1,1 milhões para cerca de 559 mil (a população agrícola familiar é constituída pelas pessoas que trabalham e/ou vivem em explorações agrícolas familiares, com pelo menos um familiar que trabalhe nessa exploração).
Hoje, “há um grande abandono das regiões rurais, não só em Portugal”, explica Filipe Duarte Santos, que admite haver um efeito de dominó que se inverteu à medida que o êxodo rural se acentuou. Antes, mais pessoas e mais animais e, portanto, menos risco de megaincêndios. Hoje, menos pessoas e menos animais distribuídos pela paisagem e, portanto, maior risco de megaincêndios: “Por exemplo, agora não temos muitos pastores, que antes levavam o gado às serras, onde o cenário, em certas regiões do país, está à vista. Esses pastores quase deixaram de existir, fruto destas mudanças socioeconómicas”.
Do êxodo rural, alimentado pelo contexto socioeconómico, ao contexto climático que Portugal vive: esta é a combinação que, de acordo com Filipe Duarte Santos, pode ajudar a explicar o aumento de megaincêndios desde o início do novo século. “Está a haver essa mudança socioeconómica profunda que, combinada com a mudança climática, traz os resultados que temos assistido”, refere-se o presidente do CNADS aos mais de 170 mil hectares ardidos em Portugal este ano.