Dez países da região das Américas, entre eles o Brasil, registraram surtos de sarampo neste ano, de acordo com a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS/OMS).

Ao todo, a agência ligada à Organização Mundial da Saúde (OMS), calcula que, até agora, foram registrados 10.139 casos confirmados em países norte e sul-americanos — montante 34 vezes maior do que o registrado no mesmo período de 2024. A OPAS calcula 18 mortes relacionadas à doença.

Os surtos começaram a ocorrer na América do Norte, onde estão os países com mais casos — Canadá (4.548 casos), México (3.911) e Estados Unidos (1.356) —, afetando especialmente o que os especialistas chamam de “bolsões de pessoas não vacinadas”. Para ter ideia, de acordo com a OPAS, 71% dos casos ocorreram em indivíduos não vacinados e 18% em pessoas com situação vacinal desconhecida. Desde então, é como se o vírus estivesse “descendo” para a América do Sul.

Ao Estadão, o Ministério da Saúde afirmou que o Brasil confirmou, até o momento, 23 casos de sarampo. A maior parte deles é importada — ou seja, de pessoas que viajaram para fora do País e voltaram infectadas — ou relacionados à importação, sem indícios de circulação comunitária.

Entre janeiro e maio deste ano, foram cinco casos registrados, sendo um no Distrito Federal, dois no Rio de Janeiro, um em São Paulo e um no Rio Grande do Sul.

No Rio Grande do Sul, a Secretaria Estadual da Saúde informou que o caso, confirmado em abril, foi de uma mulher adulta sem comprovante vacinal, que havia retornado de viagem aos Estados Unidos. No Distrito Federal, o paciente também era adulto, com histórico de viagem internacional.

Em São Paulo, o paciente foi um homem de 31 anos. Ele estava vacinado, não precisou de internação e está recuperado, segundo a Secretaria de Estado da Saúde (SES-SP). A fonte de infecção é desconhecida.

A origem da infecção dos dois casos registrados no Rio de Janeiro, em duas crianças menores de 1 ano em São João do Meriti, também é desconhecida. Ambas foram hospitalizadas e tiveram alta médica duas semanas depois, de acordo com a secretaria de saúde estadual.

O surto mais recente é no Tocantins. De acordo com Eder Gatti, diretor do Programa Nacional de Imunizações (PNI), trata-se de uma família que viajou à Bolívia. Eles fazem parte de uma comunidade “naturalista”, com muitas pessoas não vacinadas, que vivem na cidade de Campos Lindos.

Segundo Gatti, a estratégia utilizada ali foi fazer uma espécie de “casulo” no entorno dessa comunidade, para que o vírus não escapasse desse espaço. “Nosso protocolo exige monitoramento durante três meses, mas já estamos há oito dias sem casos suspeitos lá em Campos Lindos e 13 dias sem casos confirmados”, conta.

Desde o final de maio, o Ministério da Saúde tem divulgado notas técnicas para atualizar Estados e municípios sobre a situação do sarampo no País e na região, reforçando a importância da vacinação e da vigilância para realizar o chamado bloqueio de casos — medida em que as equipes de saúde vacinam rapidamente os contatos de uma pessoa infectada, a fim de evitar que o vírus se espalhe.

Em abril, a pasta passou a recomendar a aplicação da chamada dose zero em bebês a partir de 6 meses — faixa etária que não faz parte do esquema primário de imunização. A cada atualização, novos Estados e cidades foram incorporados a essa estratégia.

No final da primeira quinzena de agosto, foi publicado documento que ampliava a campanha para:

  • Todos os municípios do Acre, Amapá, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará, Paraná, Rondônia, Roraima, Santa Catarina e Tocantins.
  • As cidades do Rio Grande do Sul que fazem fronteira com Argentina e Uruguai.
  • As cidades turísticas, universitárias e de alto fluxo de São Paulo, o que inclui as regiões metropolitana de São Paulo e de Campinas, além da Baixada Santista.

É como se, com essa medida, o Brasil estivesse construindo uma espécie de barreira de proteção, voltada tanto às regiões de fronteira com outros países quanto às principais portas de entrada de viajantes internacionais, como São Paulo e Rio de Janeiro, segundo especialistas.

“Em relação ao sarampo, o Brasil é, agora, uma ‘ilha ao contrário’: estamos cercados de casos de sarampo em vários países das Américas”, afirma a médica Rosana Richtmann, do Instituto de Infectologia Emílio Ribas e da Sociedade Brasileira de Infectologia.

Surgimento de manchas vermelhas pelo corpo é o principal sintoma do sarampo Foto: bilanol/Adobe Stock

Mas, segundo especialistas, será uma tarefa árdua para o País conseguir sustentar o certificado de “livre do sarampo”, reconquistado no final do ano passado. Afinal, esse é altamente contagioso e o cenário nacional de cobertura vacinal está muito heterogêneo.

“Não é um momento de alerta máximo — de achar que vai ter uma epidemia no país. É um momento de termos consciência do nosso papel individual como cidadão”, diz a virologista Marilda Siqueira, chefe do Laboratório de Vírus Respiratórios, Exantemáticos, Enterovírus e Emergências Virais do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), reforçando a importância da vacinação.

É hora de redobrar a atenção, concorda Gatti. “Nós estamos livres do sarampo, porém, temos uma pressão externa muito grande (considerando o cenário epidemiológico do mundo e das Américas).”

O que é sarampo?

O sarampo é uma doença infecciosa aguda, que causa um quadro de saúde preocupante e potencialmente fatal, especialmente para crianças com menos de 2 anos. Ela já foi uma das principais causas de mortalidade infantil no mundo.

Segundo Eduardo Jorge da Fonseca Lima, presidente do Departamento de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), que representa Pernambuco no Conselho Federal de Medicina (CFM), os pequenos são mais suscetíveis a complicações da doença porque têm um sistema imunológico menos maduro.

“As principais complicações da doença são a pneumonia causada pelo próprio vírus do sarampo, ou uma pneumonia secundária, causada por uma bactéria, além de otite”, descreve. Uma consequência mais grave, embora rara, é a encefalite — uma inflamação no cérebro.

É importante frisar que o vírus do sarampo é considerado um dos mais contagiosos. “Dependendo da variante do Sars-CoV-2, da covid-19, uma pessoa infecta outras duas ou três. No caso do sarampo, um indivíduo pode infectar outros 16 que não estejam imunizados”, compara Marilda.

Isso ocorre porque esse micro-organismo tem a capacidade de ficar suspenso no ar por horas, e viável para infecção, o que permite a transmissão mesmo sem contato direto com a pessoa infectada.

Além disso, ele é bem difícil de controlar. Os primeiros sintomas, como tosse e febre, são inespecíficos, ou seja, acendem o alerta para inúmeras doenças. Quando as manchas vermelhas aparecem no corpo, principal característica da doença, o paciente pode estar transmitindo a doença há seis dias — a transmissão continua até quatro dias após o surgimento dessas marcas.

Dose zero

O esquema regular da vacinação é composto fundamentalmente por duas doses. A primeira, aos 12 meses, e a segunda, aos 15 meses. Em geral, a vacina utilizada é a tríplice viral (sarampo, caxumba e rubéola).

Até alguns anos atrás, a vacinação contra o sarampo começava aos 9 meses. Mas estudos mostraram que o momento ideal para garantir a produção de anticorpos em níveis suficientes, capazes de proteger até a vida adulta, é aos 12 meses.

Isso porque a mãe transmite anticorpos ao bebê durante a gestação e também pela amamentação. Quando a aplicação da vacina é feita antes do primeiro ano de vida, esses anticorpos maternos podem interferir na resposta do organismo da criança, tornando a eficácia menor e a proteção, apenas temporária.

Mas, em situações de surto, como a que se vê agora, a chamada “dose zero” pode ser recomendada. Ela recebe esse nome porque não muda o esquema regular: aos 12 meses, a criança deverá tomar normalmente a primeira dose.

Gatti conta que o ministério passou a distribuir um estoque de dupla viral (sarampo e rubéola), com indicação de aplicação como dose zero para bebês de 6 a 8 meses, porque a tríplice viral disponível do momento só pode ser aplicada em crianças a partir dos 9 meses. Nos pequenos de 9 a 11 meses, a indicação é usar a tríplice viral.

A partir de outubro, o País passa a contar com a tríplice viral produzida pelo Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos, o Bio-Manguinhos da Fiocruz, o que normaliza de vez a situação, afirma. É que essa versão pode ser aplicada a partir dos 6 meses.

O sarampo está ‘de volta’. Por quê?

Marilda conta que, após o sucesso no controle da poliomielite nas Américas no final dos anos 1980, os países da região se comprometeram a erradicar o sarampo, promovendo campanhas de vacinação em massa com um imunizante seguro e eficaz, disponível desde a década de 1960.

Nos anos 1990, o Brasil fez uma campanha de destaque mundial, vacinando entre 94% e 96% das crianças menores de 14 anos. “Foi um sucesso estrondoso.” Para ter ideia, em 1990, o País registrou 61.471 casos de sarampo, número que caiu para 36 em 2000.

Em 2016, as Américas receberam o selo de “livres do sarampo”. Ainda assim, o Brasil enfrentou epidemias pontuais no início da década de 2010, e, desde 2015, a cobertura vacinal começou a cair por aqui — por falhas no acesso às vacinas, subestimação do risco das doenças e disseminação de informações antivacina.

Em 2018, com o grande fluxo migratório e as baixas coberturas, o vírus voltou a circular. Em 2019, o País chegou a perder a certificação, com 9.329 casos em 2018, 21.704 em 2019 e 8.035 em 2020.

Segundo Gatti, não há circulação comunitária registrada desde 2022, e o País recebeu novamente a certificação no final do ano passado.

A OPAS, porém, é categórica: os surtos nas Américas estão ligados a baixas coberturas vacinais.

Desde o fim da pandemia, a vacinação melhorou, mas ainda não atingiu níveis seguros. “A melhora ainda não é suficiente para nos colocar em situação de baixo risco”, afirma Rodrigo Lins, presidente da Sociedade de Infectologia do Estado do Rio de Janeiro.

As taxas da tríplice viral estão abaixo da meta de 95% — a primeira dose tem média nacional de 93% e a segunda, de 76%, com grandes variações regionais. Gatti reconhece o problema e diz que é justamente por isso que o ministério está reforçando a vacinação em cidades de fronteiras e naquelas consideradas “portas de entrada” de viagens internacionais. Se os casos importados aumentarem, o país corre risco de nova circulação comunitária.

Para os especialistas, é aterrorizador ter de falar sobre sarampo em 2025, especialmente após a vacina ter se mostrado um poderoso antídoto na batalha contra esse vírus complexo e perigoso.

“Ver de novo o sarampo entrando no Brasil é preocupante. Isso significa que outras doenças, como a poliomielite, também podem voltar”, reflete Isabella Ballalai, diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).