5 minutos de leitura
Uma tempestade perfeita se aproxima quando o assunto é leitura.
A inteligência artificial surgiu em um momento em que crianças e adultos já vinham dedicando cada vez menos tempo aos livros.
Como linguista, estudo como a tecnologia influencia a maneira como lemos, escrevemos e pensamos.
Isso inclui o impacto da IA, que vem transformando radicalmente a forma como nos relacionamos com os livros e outros tipos de texto – seja para realizar tarefas escolares, fazer pesquisas ou ler por prazer. Minha preocupação é que a inteligência artificial esteja acelerando uma mudança que já vinha acontecendo: a perda do valor da leitura como experiência essencialmente humana.
TUDO, MENOS LIVROS
As habilidades de escrita da IA têm chamado muita atenção. Mas só agora professores e pesquisadores começam a discutir sua capacidade de “ler” grandes volumes de informação e, a partir disso, gerar resumos, análises e comparações de livros, artigos e ensaios.
Hoje, em vez de ler um livro inteiro, muitos alunos recorrem a resumos feitos por IA sobre a trama e os principais temas abordados. Essa facilidade – que reduz a motivação para ler por conta própria – foi justamente o que me levou a escrever um livro sobre os prós e contras de deixar a inteligência artificial “ler por você”.
Claro, atalhos de leitura não são novidade. Livretos com resumos de obras literárias existem desde os anos 1950. Séculos antes, a Royal Society de Londres já publicava resumos dos artigos científicos em seu periódico “Philosophical Transactions”. Na metade do século 20, eles se tornaram parte inseparável da produção acadêmica.
A internet ampliou ainda mais essas alternativas. O Blinkist, por exemplo, é um aplicativo que transforma livros de não ficção em resumos de 15 minutos, tanto em áudio quanto em texto.
Ferramentas como o BooksAI oferecem resumos e análises que antes eram feitos por pessoas
Mas a IA generativa levou esses atalhos a outro nível. Ferramentas como o BooksAI oferecem resumos e análises que antes eram feitos por pessoas. Já o BookAI.chat convida o usuário a “conversar” com os livros. Em ambos os casos, ler a obra completa deixa de ser necessário.
Se um aluno precisa comparar “As Aventuras de Huckleberry Finn”, de Mark Twain, com “O Apanhador no Campo de Centeio”, de J. D. Salinger, os resumos ajudam até certo ponto. Mas ainda caberia a ele construir a análise. Agora, com modelos como o NotebookLM, do Google, a IA lê, compara e até sugere perguntas para discussão em sala de aula.
O problema é que isso nos tira um dos maiores benefícios de ler: o amadurecimento pessoal que vem de acompanhar, ainda que indiretamente, os dilemas do protagonista.
Na pesquisa acadêmica, ocorre algo semelhante. Ferramentas como SciSpace, Elicit e Consensus combinam mecanismos de busca com IA para entregar artigos resumidos e conectados entre si, reduzindo drasticamente o tempo gasto em revisões bibliográficas. O site ScienceDirect AI, da Elsevier, chega a anunciar: “Adeus tempo de leitura desperdiçado. Olá, relevância”.
Isso pode parecer muito prático, mas o que se perde é justamente o exercício de julgar por conta própria o que é relevante e de criar conexões entre ideias.
UM MUNDO QUE LÊ CADA VEZ MENOS
Mesmo antes da IA generativa, o hábito da leitura já estava em queda – tanto na escola quanto no lazer.
Nos EUA, a Avaliação Nacional do Progresso Educacional mostrou que, em 1984, 53% dos alunos do quarto ano liam por diversão quase todos os dias. Em 2022, esse número caiu para 39%. Entre os alunos do oitavo ano, a queda foi de 35% em 1984 para 14% em 2023.
No Reino Unido, uma pesquisa da National Literacy Trust em 2024 revelou que apenas um em cada três jovens de oito a 18 anos afirmou gostar de ler no tempo livre – quase nove pontos percentuais a menos em relação ao ano anterior.
Entre adolescentes, a tendência é a mesma. Em 2018, uma pesquisa com 600 mil estudantes de 15 anos em 79 países mostrou que 49% só liam quando eram obrigados – contra 36% uma década antes.
No ensino superior, esse quadro se repete. Muitos professores têm reduzido as leituras obrigatórias porque os alunos simplesmente se recusam a ler. Em uma pesquisa que conduzi com a especialista Anne Mangen, constatamos essa tendência.
Um episódio relatado pelo comentarista cultural David Brooks ilustra bem a situação:
“Perguntei a um grupo de alunos, no último dia de curso em uma universidade de prestígio, qual livro havia mudado suas vidas nos últimos quatro anos. O silêncio foi constrangedor. Até que um estudante respondeu: ‘você precisa entender, nós não lemos assim. Só lemos o suficiente para passar na disciplina’.”
E entre adultos? Apenas 54% dos norte-americanos leram pelo menos um livro em 2023, segundo o YouGov. Na Coreia do Sul, a taxa foi de 43%, bem abaixo dos 87% registrados em 1994. No Reino Unido, a Reading Agency apontou uma queda semelhante: em 2024, 35% disseram ser “ex-leitores” – pessoas que costumavam ler com frequência, mas pararam. Entre eles, 26% afirmaram ter trocado os livros pelas redes sociais.
O termo “ex-leitor” pode se aplicar a qualquer um que tenha deixado de priorizar os livros – seja por desinteresse, pelo excesso de tempo online ou por terceirizar a leitura para a IA.
O QUE SE PERDE QUANDO SE DEIXA DE LER
Por que ler, afinal?
Os motivos são inúmeros: prazer, redução de estresse, aprendizado, crescimento pessoal.
Estudos mostram uma correlação entre a leitura e o desenvolvimento cerebral infantil, felicidade, longevidade e até desaceleração do declínio cognitivo.
Esse último ponto é especialmente importante em uma época em que tanta gente delega à inteligência artificial tarefas que exigem raciocínio – processo conhecido como “terceirização cognitiva”. Pesquisas mostram que, quanto mais alguém depende da IA para realizar tarefas, menos acredita estar usando a própria capacidade de pensar.
Um estudo utilizando eletroencefalograma chegou a identificar padrões diferentes de conectividade cerebral entre pessoas que escreveram um ensaio com ajuda da IA e aquelas que escreveram sozinhas.
Quanto mais alguém depende da IA para realizar tarefas, menos acredita estar usando a própria capacidade de pensar
Ainda é cedo para saber quais serão os efeitos da inteligência artificial sobre a nossa capacidade de pensar de forma independente no longo prazo. Até agora, a maior parte das pesquisas tem focado no uso da IA para escrita e tarefas em geral, não especificamente na leitura. Mas, se deixarmos de praticar a leitura, a análise e a interpretação, corremos o risco de enfraquecer – ou até perder – essas habilidades.
E não é só a cognição que está em jogo. Também perdemos o que torna a leitura prazerosa: encontrar uma fala marcante, apreciar uma frase bem construída, criar laços com um personagem.
A promessa de eficiência que a IA oferece é tentadora. Mas pode nos privar dos benefícios da leitura.
Naomi S. Baron é professora de linguística da American University.
Este artigo foi republicado do “The Conversation” sob licença Creative Commons. Leia o artigo original.