Na imagem acima, corredores da Feira Pan-Amazônica do Livro e das Multivozes, em Belém (Foto: Augusto MIranda/Agência Pará).
Cresci em Icoaraci, distrito de Belém, vindo de uma família pobre, mas cercado por livros, jornais e revistas. Esse ambiente de leitura — muitas vezes improvisado, construído com o pouco que havia na estante e com as idas semanais à biblioteca pública do bairro- que chegou a vir abaixo, fruto do descaso do prefeito Duciomar Costa e reconstruída quase do zero por Edmilson Rodrigues — é determinante na minha trajetória. Até hoje é envolto em certo mistério para mim, o fato de aqui e ali surgirem livros em minha casa, já que dinheiro não sobrava para grandes arroubos culturais.
Mas foi entre enciclopédias adquiridas à prestação de mascates que batiam de porta em porta, livros (alguns escolares) e o jornal comprado por minha mãe quase todos os domingos e que ela não gostava ficassem com os cadernos desorganizados e fora de ordem antes da leitura dela, que descobri a força das palavras. Que elas transformam, emocionam, denunciam e criam mundos. É desse lugar que parti para me tornar escritor, jornalista com algumas premiações na carreira e roteirista de televisão e cinema. E é esse mesmo caminho que a cada ano me leva à Feira Pan-Amazônica do Livro e das Multivozes — não apenas como visitante assíduo, mas, com enorme orgulho, como autor que já chegou a lançar livro ali naquele espaço.
Mais do que um evento literário, a Feira se afirma, nesses dias, como uma grande celebração da cultura amazônica. O Hangar Centro de Convenções, onde ela geralmente ocorre, costuma ficar completamente tomado por pessoas de diferentes idades, e se transforma em um lugar de convivência, troca e partilha. Entre estandes de editoras, livrarias independentes, coletivos criativos e espaços de debate, Belém “vive” um momento raro: aquele em que o livro passa da ação solitária ao gesto coletivo, do silêncio da leitura à potência do encontro.
As homenagens deste ano — à escritora Wanda Monteiro e ao Mestre Damasceno — representam esse espírito de valorização das nossas vozes. De um lado, a sensibilidade da escrita que dialoga com a cosmogonia amazônica; do outro, a força da tradição oral e da musicalidade quilombola. Ao unir essas duas trajetórias, a feira reafirma que leitura não se resume à palavra impressa, mas se estende aos saberes transmitidos também na oralidade.
Ao mesmo tempo, o impacto econômico é intenso e não pode ser ignorado. Moro em frente a um ‘sebo’ de livros. Seu proprietário, semanas antes do evento, já se preparava e aguardava ansioso pela Feira, empacotando caixas e caixas de livros. Outro amigo também fez a mesma coisa, mas fazendo questão de transformar seu estande em um pequeno espaço político, com uma bandeira de Palestina Livre exibida orgulhosamente em uma das paredes.
Os mais de cem estandes e os espaços como o Beco do Artista e a Feira Criativa geram vendas, renda e visibilidade para autores, editores e artistas da região (há os que reclamam por mais visibilidade, mas isso é normal). O Beco do Artista é um espaço para a comercialização de obras autorais e originais de artistas visuais, como quadrinistas, ilustradores e criadores de miniaturas, conforme um edital do Mapa Cultural do Pará. Já a Feira Criativa reúne arte, vestuário e gastronomia, ou seja, um movimento para além da literatura.
A movimentação de pessoas aumenta o fluxo inclusive para ambulantes e taxistas, que do lado de fora, também faturam. Há livros sendo vendidos, contatos sendo feitos, encontros que se desdobram em projetos.
Outro aspecto essencial neste momento é o CredLivro, que concede R$ 200 em crédito para professores da rede estadual comprarem livros na feira. A iniciativa, pelo menos na teoria, estimula o hábito de leitura entre educadores e fortalece o elo entre literatura e sala de aula ao permitir que os professores levem os livros diretamente para seus projetos pedagógicos.
Enquanto isso, os debates ocorrem simultaneamente em mesas redondas e palestras, abordando temas como a crise climática, o protagonismo das mulheres amazônidas, o racismo ambiental, os saberes indígenas e a literatura como forma de resistência. A presença maciça de jovens e crianças nas atividades de mediação de leitura demonstra que a feira também é um espaço de formação para as novas gerações.
Ser parte disso — como leitor, autor e cidadão — é lembrar que um menino de Icoaraci, que frequentava a biblioteca pública para sonhar com outros mundos, hoje pode caminhar entre os corredores da feira e que já viu seus próprios livros alcançarem novos leitores. É confiar que essa experiência compartilhada, vivida todos os anos em Belém, planta sementes e abre caminhos para que outras vozes amazônicas também floresçam. E que novos amantes de palavras mágicas impressas surjam e se deixem transformar por livros. O mundo precisa e merece isso.
Beco do Artista (Foto: Pedro Guerreiro/Agência Pará).