Algumas unidades em particular?
Temos a liderar esta carência o hospital de Vila Franca de Xira, com uma carência extrema de enfermeiros. Não conseguem atrair enfermeiros para este hospital. Depois temos, por exemplo, o hospital de Faro, também muito parecido. E o hospital de Santarém. Também devido ao facto da própria habitação.
É impensável que um enfermeiro que receba 1.200 ou 1.300 euros possa pagar rendas de 700, 800 ou 900 euros. Não são locais atrativos para os enfermeiros ficarem a trabalhar. Mas há depois outras regiões, por exemplo, no centro do país, como a Unidade Local de Saúde [ULS] de Leiria, também já com uma carência crónica de enfermeiros. Temos recebido muitas escusas de responsabilidade da ULS de Coimbra, das maternidades devido ao encerramento de outras maternidades periféricas. Há aqui uma sobrecarga de trabalho com menos enfermeiros especialistas no exercício profissional. No norte do país, a unidade mais carenciada, até pela sua dimensão e a população que serve, é a ULS de Tâmega e Sousa [com sede em Penafiel].
16 médicos da maternidade Bissaya Barreto entregam escusas de responsabilidade
Há outras unidades onde têm sido apresentadas estas escusas?
Sim, em 2024 tivemos 1.627 escusas de responsabilidade e, contabilizadas até o momento, em 2025 temos 1.084 escusas. A maior parte delas tem a ver com a questão da falta de enfermeiros, mas não só, também com as condições de funcionamento dos serviços, com a falta de material.
Há algum rácio adequado ou recomendado de doentes por enfermeiro?
A Ordem dos Enfermeiros tem um regulamento próprio que define aquela que é a dotação mínima para cada serviço, dependendo da tipologia de serviço. Até ao momento, não conheço nenhum serviço no país que tenha este rácio adequado de enfermeiro/doente, esta dotação mínima, de acordo com as recomendações da Ordem.
Ou seja, há vagas por preencher em todos os serviços?
Há vagas por preencher e há uma carência muito grande de enfermeiros.
No ano passado, os sindicatos dos enfermeiros chegaram a acordo com o Governo para uma valorização salarial faseada até 2027. É a primeira em muitos anos. Ainda assim, considera que os enfermeiros são valorizados no SNS?
Os enfermeiros ainda não são valorizados no SNS como gostaríamos, porque fazem um trabalho extraordinário. Se nós um dia acordássemos e não tivéssemos enfermeiros, só assim é que perceberíamos a falta que eles fazem no SNS, no setor social e no setor privado. Aliás, o setor social é altamente fustigado pela falta de enfermeiros, pelas próprias condições de trabalho. Os enfermeiros precisam de ser valorizados. Foi dado este passo que foi importante de valorização salarial mas não é, obviamente, o ideal.
Governo e sindicatos de enfermeiros chegam a acordo sobre valorização da carreira
Há outros passos que vão ser dados com os sindicatos, como a regulamentação de um Acordo Coletivo de Trabalho, que os enfermeiros nunca tiveram, no sentido de se conseguir igualar as condições do exercício profissional entre os contratos em funções públicas e os contratos individuais de trabalho. São enfermeiros que trabalham lado a lado nos mesmos serviços e que têm condições diferentes, o que não faz sentido nenhum. E este acordo coletivo de trabalho, para além desta questão, há de regular outras, nomeadamente a própria organização do trabalho e a questão da avaliação de desempenho.
Falava há pouco da questão da habitação. Há muitos enfermeiros que não querem ir trabalhar para Lisboa, por exemplo, porque o custo da habitação é muito elevado. Deveria ser criado um subsídio, algum tipo de apoio nestes casos?
Deveria ser criado um subsídio de apoio à renda. Na região de Lisboa e Vale do Tejo, nalgumas regiões do Alentejo e no Algarve, abrem concursos e muitas vezes terminam sem preencherem as vagas, porque os enfermeiros não concorrem para esses locais. Portanto, devia haver aqui um apoio, claro, por parte do Estado para que se consiga fixar enfermeiros nestas regiões.
Há também muitos enfermeiros ainda com contratos a termo, contratos precários, temporários. Em alguns casos estão a preencher vagas que precisariam de ser ocupadas de forma permanente. Conseguiria dar alguns exemplos com os quais tenha contactado nas visitas que faz os hospitais?
Temos muitos enfermeiros, aliás, todos os enfermeiros que são recém-licenciados passam por um contínuo de contratos a termo de seis meses, que só tem fim com o limite que a lei impõe e muitos deles têm que sair do hospital, e têm de ficar um tempo fora para depois poderem voltar. É inacreditável como é que um país consegue tratar um bem tão escasso como os enfermeiros desta forma. Já o dissemos ao ministério da Saúde, não faz sentido nenhum, que, para necessidades que são permanentes, estejamos sempre a propor contratos de seis meses que não trazem estabilidade nenhuma. E isto a que é que leva? Leva a que depois os enfermeiros procurem outros locais que lhe dêem a estabilidade de que necessitam.
A remuneração é importante e o país não vai conseguir competir nos próximos anos com países que tenham políticas de remuneração altamente atrativas, mas há outras medidas que podíamos implementar no país, nomeadamente esta, e acabar de uma vez por todas com esta situação de contratos sistemáticos de seis meses, que é a única coisa que oferecemos aos recém-licenciados.
Como é que os hospitais justificam essa política? Consideram que aquele lugar não é uma necessidade permanente?
Eu diria que a própria rotina, do ponto de vista da contratação, tem sido esta. Enquanto não houver uma orientação clara por parte do Ministério da Saúde, não vamos conseguir ultrapassar esta situação.
Outro problema que o país enfrenta há vários anos é a questão da emigração massiva de enfermeiros. É um fenómeno que se está a agravar? O que é que justifica este fenómeno: formamos enfermeiros a mais e, portanto, temos excesso de enfermeiros ou esta situação prende-se com a falta de condições que os enfermeiros têm em Portugal e com os baixos salários?
É exatamente isso. Tivemos um pico de emigração em 2019, com 4.500 pedidos de declarações para poderem emigrar. Depois tivemos os anos da pandemia e depois estabilizámos mais ou menos entre os 1.400 e 1.600 pedidos por ano de declarações para trabalhar fora do país.
É um número excessivo?
É um número excessivo porque se formam anualmente 2.800 a 3.000 enfermeiros. Relembro que a formação em Portugal é das melhores que existem e por isso é que muitos países vêm a Portugal tentar captar enfermeiros portugueses. Estamos a falar de uma percentagem de 50% a 60% do número que formamos, que estamos a exportar para outros países quando precisamos que todos fiquem em Portugal — com melhores condições, obviamente.
Países como a Suíça, a França, a Bélgica e, neste momento, também a Arábia Saudita conseguem oferecer quatro a cinco vezes mais de vencimento em relação ao que recebem em Portugal.
Mas seria possível ao SNS competir com essas condições?
Neste caso, do ponto de vista da remuneração, é difícil que nos próximos anos se consiga subir vencimentos a este nível. São países que têm um poder económico muito mais alto, com políticas muito mais agressivas do ponto de vista da atração.
Então onde é que poderíamos intervir?
Podemos intervir nas questões de maior estabilidade, na questão dos contratos, na questão dos pacotes de incentivos, que é aquilo que muitos países estão a produzir no sentido de conseguirem atrair enfermeiros. Este movimento migratório está associado a vários fatores. À questão das diferenças salariais, mas há também as condições de trabalho, com o excesso de trabalho que temos nos serviços, pela falta de enfermeiros, as próprias oportunidades de progressão que têm em termos de carreira lá fora. Em Portugal, um enfermeiro precisa de quase de 100 anos para poder chegar ao topo da carreira, isto é inacreditável.