“Há uma esperança crescente — e uma visão também”, canta Tony Martin em “Anno Mundi (The Vision)”, faixa que abre o álbum “Tyr”. Se “Headless Cross” (1989) foi encarado como um novo começo para o Black Sabbath, o trabalho seguinte carregava a expectativa de consolidar essa fase renovada e criativa da banda.
– Advertisement –
Em fevereiro de 1990, após sete meses de turnê, Tony Iommi (guitarra), Cozy Powell (bateria), Neil Murray (baixo), Geoff Nicholls (teclados) e o próprio Martin voltaram ao estúdio. O quinteto se reuniu no Woodcray, em Berkshire, no sudeste da Inglaterra, com uma missão clara: compor e gravar um novo álbum totalmente do zero. Quatro meses depois, o grupo entregava “Tyr” — um disco conceitual de tons mitológicos, produção afiada e arranjos ambiciosos que levariam o Sabbath de volta às paradas do Reino Unido.
“Queremos colocar o Sabbath de volta no mapa”, disse Tony Martin à época.
Conheça agora os bastidores, o contexto e o legado de um dos álbuns mais subestimados — e ousados — do Black Sabbath.
Do satanismo aos deuses nórdicos
“‘Tyr’ foi meio que uma continuação de ‘Headless Cross’”, relembra o baixista Neil Murray em entrevista ao autor Martin Popoff, publicada na biografia “Destruição Desencadeada” (DarkSide Books, 2013). “A formação que gravou ‘Tyr’ era a mesma que havia excursionado com ‘Headless Cross’, então estávamos bastante entrosados.”
Musicalmente, segundo ele, não houve mudanças radicais. “Mas, no que diz respeito às letras, estávamos bem decididos a nos afastar daquele clima de adoração ao diabo.”
A ruptura com o satanismo do disco anterior começou já no título. A sugestão inicial de Tony Martin — “The Satanic Verses” (“Os Versos Satânicos”), inspirada no polêmico romance homônimo de Salman Rushdie — foi prontamente descartada. Em seu lugar, surgiram “Tyr” e uma guinada temática: se “Headless Cross” mergulhava em referências demoníacas e ocultismo, “Tyr” se inspira na mitologia nórdica, em especial na figura do deus Týr, filho de Odin, símbolo da guerra e da justiça.
Segundo Martin, o disco é “baseado nas crenças das pessoas”. E ele explica sua abordagem como letrista:
“Gosto de pegar histórias reais e transformá-las em letras. Curto muito história, especialmente a dos vikings. Achei que seria interessante escrever sobre eles, já que foram um povo bastante sórdido. Então fizemos três ou quatro músicas em torno desse universo. O resto do álbum, no entanto, não tem relação com isso.”
Mesmo com a guinada mitológica, os ecos do clima sombrio de “Headless Cross” ainda estão presentes. A atmosfera de misticismo e julgamento pode ser sentida em faixas como “The Law Maker” (“Ele é mau e misterioso, as pessoas temem o seu nome”) e “Heaven in Black”, composta após uma visita de Martin à Catedral de São Basílio, em Moscou, durante a turnê do disco anterior.
Mas o centro de gravidade lírico está, de fato, na tríade composta por “The Battle of Tyr”, “Odin’s Court” e “Valhalla” — na qual Martin canta que “o Reino de Odin é o Reino dos Deuses / Onde apenas as almas dos bravos guerreiros podem descansar em paz” —, que formam uma espécie de suíte épica sobre honra, bravura e transcendência espiritual.
Anos depois, na autobiografia “Iron Man” (Planeta, 2014), Tony Iommi admitiria que levou um tempo para se familiarizar com o conceito lírico do álbum. Ao supracitado Popoff, confessou que torceu o nariz para algumas das ideias de Martin.
“Já resolvi isso com o Tony Martin; tivemos algumas conversas sobre certas letras. Porque ele às vezes se deixava levar demais pelo tema, sabe? ‘Tyr’ era todo sobre deuses nórdicos e tudo mais, e ele acabou exagerando um pouco na dose.”
Os Dez Mandamentos e uma power ballad
Se, no campo lírico, “Tyr” não contou com total aprovação de Tony Iommi, no aspecto musical o guitarrista aponta momentos que merecem destaque:
“Gosto particularmente de ‘Anno Mundi (The Vision)’. Ela começa com um coral cantando em latim. Essa e ‘The Sabbath Stones’ são músicas realmente poderosas — pesadas e arrastadas. Curto esse tipo de som mais denso, com riffs bem marcantes, e ‘The Sabbath Stones’ é especialmente pesada.”
Segundo Tony Martin, “Anno Mundi” — termo em latim que significa “Ano do Mundo” — nasceu de uma inquietação coletiva percebida naquele momento:
“Naquela época, todo mundo estava começando a entrar nessa de ‘salve o planeta’. Parecia que a humanidade estava enlouquecendo com isso. ‘Precisamos fazer isso, precisamos fazer aquilo’… então pensei: ‘esse é o ano em que todo mundo quer salvar o mundo’.”
Já “The Sabbath Stones”, que passou por diferentes títulos provisórios — “Lunchbox”, depois “Fire and Water” e, mais tarde, “Fortune the Flame” — trata de temas bíblicos, em especial dos Dez Mandamentos. A letra faz referência direta a Moisés, o portador das tábuas da lei, e aborda dilemas existenciais e questionamentos sobre a bondade divina.
Na mesma linha espiritual e crítica aparece “Jerusalem”, que Martin regravaria em seu álbum solo “Back Where I Belong” (1992). O vocalista explica a gênese da letra:
“Vi na TV inglesa uma reportagem sobre um televangelista americano que pegava dinheiro das pessoas e usava para comprar mansões e carros de luxo. Achei aquilo ridículo e irônico. O cara vivia repetindo ‘Deus seja louvado, Deus seja louvado’, mas estava simplesmente explorando todo mundo. O refrão da música questiona: ‘Para onde você irá quando tudo der errado? Jerusalém?’.”
Apesar dessas faixas robustas e carregadas de significado, a escolhida como single e videoclipe foi justamente a balada “Feels Good to Me”. “Era uma história de amor sobre uma garota de moto e um cara que a trai, briga com ela e esse tipo de coisa”, escreveu Iommi com certo desdém. “O clipe ficou meio medíocre, exagerado em comparação ao que estávamos acostumados a fazer.”
Martin reforça a crítica ao vídeo, apontando o contraste visual e narrativo como um dos grandes problemas:
“Os diretores que colocavam com a gente sempre tinham ideias meio esquisitas. Se você assistir ao clipe, ele começa em um teatro antigo inglês, e de repente corta para Los Angeles, com uma garota pilotando uma moto. Eles fizeram coisas estranhas, que não tinham absolutamente nada a ver com a música. E o clipe fica alternando o tempo inteiro: teatro gótico inglês, Los Angeles ensolarada, teatro gótico inglês, Los Angeles ensolarada… Pra quê?!”
Entre o sucesso relativo e as frustrações
Com uma capa que mescla elementos visuais típicos do black metal norueguês e referências ao álbum “Johnny the Fox” (1976), do Thin Lizzy, “Tyr” foi lançado em 20 de agosto de 1990. O disco superou em desempenho comercial seus dois antecessores da era Tony Martin, alcançando a 24ª posição na parada britânica e obtendo recepção razoável em mercados europeus de médio porte.
No competitivo mercado norte-americano, no entanto, o cenário era outro. Enquanto Iron Maiden e Judas Priest figuravam confortavelmente entre os 30 discos mais vendidos, o Black Sabbath sequer entrou no Top 200 da Billboard.
O impacto direto da baixa performance comercial foi sentido na turnê: promovida como “mundial”, ela durou apenas três meses — de 1º de setembro a 28 de novembro de 1990 — e limitou-se ao Velho Continente. As bandas de abertura foram Circus of Power e Thunder.
Apesar do giro curto, duas noites entraram para a história. No dia 8 de setembro, durante apresentação no lendário Hammersmith Odeon, em Londres, o baixista original Geezer Butler subiu ao palco para tocar “Black Sabbath”, enquanto Brian May, guitarrista do Queen, fez participações especiais em “Heaven and Hell” e “Paranoid”. Em outro episódio marcante — e caótico —, no show de Amsterdã, em 1º de novembro, o sistema de jatos de ar comprimido utilizado por Cozy Powell em seu solo de bateria apresentou falha e acabou explodindo parte do teto do Jaap Edenhal, causando um susto generalizado.
Tony Iommi responsabilizava principalmente a IRS Records pelo fracasso do disco nos Estados Unidos. Segundo o então empresário Patrick Murray, havia um sentimento de que Miles Copeland, dono da gravadora, não compreendia o universo do rock pesado — e que o Sabbath jamais recuperaria, com a IRS, o prestígio obtido nos tempos de Warner Bros.
Desmotivado com a falta de retorno financeiro e de impacto cultural comparado ao auge dos anos 1970, Iommi acabaria encontrando em outro desiludido — Ronnie James Dio — uma possível saída para seus dilemas.
Não obstante o desempenho comercial modesto, “Tyr” permanece como o álbum favorito de Tony Martin entre os que gravou com o Sabbath:
“Foi um ótimo disco de se trabalhar. Ele foi produzido pelo Cozy e pelo Tony, que acertaram a mão naqueles primeiros álbuns. Esses discos são brilhantes.”
Black Sabbath – “Tyr”
- Lançado em 20 de agosto de 1990 pela IRS Records
- Produzido por Tony Iommi e Cozy Powell
Faixas:
- Anno Mundi (The Vision)
- The Law Maker
- Jersusalem
- The Sabbath Stones
- The Battle of Tyr
- Odin’s Court
- Valhalla
- Feels Good to Me
- Heaven in Black
Músicos:
- Tony Iommi – guitarra
- Cozy Powell – bateria
- Tony Martin – vocais
- Neil Murray – baixo
- Geoff Nicholls – teclados
Clique para seguir IgorMiranda.com.br no: Instagram | Bluesky | Twitter | TikTok | Facebook | YouTube | Threads.