Extraído do livro O livro vermelho do Hip-Hop: 1995 remasterizado 2025, de Spensy Pimentel (Autonomia Literária & GLAC edições, 2025).
O livro vermelho do Hip-Hop possui uma longa história, de quase 30 anos. Filho de um fã de Jorge Ben e James Brown, eu me encantei com o Hip-Hop desde menino, no interior do Mato Grosso do Sul: gravava as apresentações que gente como Thaíde fazia na TV, no final dos anos 1980, para transcrever e decorar as letras, depois cantava com os amigos, em roda, acompanhado pelo beat box. Compunha meus próprios raps, depois, quando morei em Brasília, em 1993, e, frequentando a loja da gravadora Discovery, no Conic, tive a oportunidade de conhecer pessoalmente rappers como X e Jamaika.
Em São Paulo, ia aos shows de rap e às galerias na 24 de Maio. Quando tive de apresentar um trabalho de conclusão no curso de Jornalismo na Universidade de São Paulo (USP), foi natural escolher o tema. Para mim, era, em primeiro lugar, uma homenagem aos artistas que eu tanto admirava e uma contribuição que eu, que não sabia dançar, grafitar, versar ou tocar nas picapes, poderia dar ao movimento. Algo para se integrar, então, ao que se costuma denominar de “quinto elemento” do Hip-Hop, o conhecimento.
Da universidade para as ruas
Logo depois de ter concluído meu curso na ECA, com esse livro-reportagem, passei a tirar fotocópias dele e entregá-lo em papel às pessoas que me haviam dado entrevista. Assim, o Livro Vermelho começou a circular dentro do movimento Hip-Hop, chegando a vários lugares do país, porque as pessoas gostavam do que liam, faziam novas cópias e distribuíam – segundo me relatavam. Quando a então recém-criada revista Caros Amigos publicou uma entrevista com Mano Brown, no início de 1998, imaginei que eles poderiam ter interesse no material e o levei até a redação, deixando uma cópia na mesa de Sérgio de Souza, lenda do jornalismo brasileiro e então diretor da revista. Qual não foi minha grata surpresa quando, semanas depois, recebo um telefonema de Sérgio convidando-me para ir à redação: muito interessados no que haviam lido, a equipe da revista queria fazer um número especial da revista dedicado ao Hip-Hop. Foi uma tremenda honra! Assim, o Livro Vermelho ajudou a dar à luz ao Especial Hip-Hop da Caros Amigos, de 1998, que contou com algumas reportagens minhas, além da contribuição de vários outros incríveis jornalistas, como a amiga Marina Amaral, depois fundadora da Agência Pública, com a qual colaboro até hoje.
Eu já recebia propostas para publicar o livro nessa época, mas ainda não estava satisfeito com ele. Em 1999, o então recém-criado site Bocada Forte – o primeiro portal de Hip-Hop do Brasil – me convidou para divulgá-lo de forma online. Conheci a turma do Bocada ao participar de uma roda de conversa no Monte Azul, bairro deles na Zona Sul da São Paulo – era muito comum ser convidado para essas atividades na época, porque existiam pouquíssimos trabalhos escritos sobre o movimento até então.
“Nos últimos anos, tenho ficado particularmente impressionado com o rap indígena que tem surgido em várias partes do mundo, inclusive no Brasil.”
Nesse período tive acesso a uma bibliografia adicional, graças à generosidade de várias pessoas que me presenteavam com livros e outros materiais, interessadas em contribuir para que o trabalho ficasse ainda melhor. Consegui, assim, fazer uma revisão satisfatória dos três primeiros capítulos (o original tinha seis), e acabei entendendo que esse trecho já seria suficiente para que as pessoas tivessem acesso às ideias mais essenciais do livro – inclusive porque os demais capítulos diziam respeito a discussões mais datadas. Essa versão, com três partes, foi a que ficou conhecida na internet, passando a ser reproduzida em vários outros sites ligados ao Hip-Hop e citada em dezenas de trabalhos acadêmicos que viriam a ser produzidos nos anos seguintes.
Nova fase da vida
Depois a vida virou um “redemunho”, que me levou outra vez a Brasília, em 2003, depois São Paulo novamente, então Mato Grosso do Sul, México, Paraná, e finalmente à Bahia, onde vivo desde 2015 com minha família. Formei-me também antropólogo, trabalhei junto aos povos indígenas, sobretudo os Kaiowá e Guarani, e nos últimos anos tenho atuado junto à articulação de movimentos conhecida como Teia dos Povos, que se originou no sul da Bahia, onde moro, e hoje está se espalhando por todo o Brasil.
Nesse meio tempo, continuei pensando com o Hip-Hop, sobretudo a partir de parcerias com o site Bocada Forte, onde publiquei alguns artigos e traduções entre 2009 e 2012. Nos últimos anos, tenho ficado particularmente impressionado com o rap indígena que tem surgido em várias partes do mundo, inclusive no Brasil. No México, tive a grata oportunidade de conhecer grupos de apoio aos presos políticos do movimento negro estadunidense e o incrível pensamento de militantes como o jornalista Mumia Abu Jamal. Mesmo preso injustamente, em condições terríveis, há mais de 40 anos, ele é um dos pensadores que consegue fazer os questionamentos mais profundos ao Hip-Hop. Algumas das conclusões finais desta nova versão do livro estão fortemente alinhadas com suas ideias.
“Precisamos recordar qual foi o solo em que foram plantadas as verdadeiras raízes do Hip-Hop.”
É esse cipoal de referências que me ajudou a chegar a esta nova versão remasterizada do Livro Vermelho, surgida a partir do generoso convite do camarada Leonardo Araujo Beserra, da GLAC, com a gentil intermediação do compa Erahsto Felicio, da Teia dos Povos. O principal trabalho foi o de revisar o texto original, acrescentando, precisando ou corrigindo referências. O volume de produção acadêmica que hoje existe sobre o Hip-Hop é imenso e, além disso, os pioneiros do movimento, antes escanteados, passaram a ser valorizados e por isso deram várias entrevistas (ou escreveram textos) ao longo das últimas décadas, detalhando melhor o contexto do Bronx nos anos 1970, entre outros elementos. Também busquei acrescentar informações sobre os desdobramentos estéticos e políticos da cultura Hip-Hop ao longo dos últimos 25 anos – boa parte disso, em diálogo com o companheiro jornalista Jair Cortercertu, do Bocada Forte. A última parte do livro reaproveita alguns poucos elementos da versão original e incorpora trechos de outros escritos que publiquei entre 2010 e 2014.
Ao final, é importante dizer: dei-me ao trabalho de revisar e revisitar o texto de 1999, sobretudo, porque entendo que passamos por um grave momento histórico. O avanço do supremacismo branco nos Estados Unidos está impulsionando uma perigosa onda internacional de fortalecimento do fascismo, e é boa hora para darmos um tempo na ostentação generalizada com que tanta gente anda vivendo enquanto zanza pela gozolândia apocalíptica, dançando à beira do desastre climático. Precisamos recordar qual foi o solo em que foram plantadas as verdadeiras raízes do Hip-Hop. Que as histórias rememoradas pelo Livro Vermelho sigam servindo de inspiração a novas gerações em luta!
Spensy Pimentel
nasceu em Mato Grosso do Sul e mudou-se aos 16 anos para Brasília, depois São Paulo, onde se formou como jornalista. Colaborou com meios como Folha de São Paulo, Superinteressante, Showbizz, UOL, Agência Brasil, Rádio Nacional, Caros Amigos, Revista do Brasil (CUT), Carta Capital, Agência Pública, Repórter Brasil, Bocada Forte e Desinformémonos (México), entre outros. Em paralelo, tornou-se mestre e doutor em Antropologia, pela Universidade de São Paulo, com estágio na Universidade Nacional Autônoma do México. É autor de O índio que mora na nossa cabeça: sobre as dificuldades para entender os povos indígenas (Prumo, 2012) e coautor de diversos documentários, sendo o mais recente 2 de Julho: A Retomada, em colaboração com sua companheira, a também jornalista Joana Moncau, e com o líder camponês Joelson Ferreira, da Teia dos Povos.
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