João Almeida está a três dias de iniciar a sua quarta participação consecutiva na Volta a Espanha, corrida que celebra o 90.º aniversário com partida em Turim, Itália, no próximo sábado. O corredor português partilha a liderança da equipa UAE Emirates com o espanhol Juan Ayuso e é um dos cabeças de cartaz desta Vuelta, com legítimas pretensões aos primeiros lugares da classificação geral. 

Depois de uma primeira parte da temporada bem-sucedida, com vitórias em três provas por etapas do WorldTour, as Voltas ao País Basco, à Romandia e à Suíça, seguidas de uma frustrante desistência no Tour de França, durante a 9.ª etapa, devido a fratura de uma costela provocada por queda aparatosa duas jornadas antes, João Almeida, o Bota Lume, que desde cedo na carreira elegeu como lema de combate nas estradas, explica nesta entrevista exclusiva a A BOLA como enfrentará o derradeiro grande objetivo da sua temporada.

– A melhor posição, a quarta, na classificação geral em 2022, na sua estreia na Vuelta, vai longe no tempo de uma carreira que desde então já teve muito. Três anos volvidos e outras tentativas de chegar ao pódio, quais são as suas pretensões para esta edição da prova?

– É assim, passa um bocadinho por ser a mesma coisa. Infelizmente tive de abandonar o Tour devido à queda, o que me limitou muito na preparação para a Vuelta. No fundo,  treinei apenas duas semanas, pouco mais, a 100 por cento, sem limitações. Mesmo assim, creio que estou num ponto de forma física minimamente bom. Perante isto, darei o melhor, e ver como é que acabo…

João Almeida esta temporada tem estado bem mais ofensivo

– Parece estar com otimismo mais moderado até do que o lhe é habitual. Parecia mais confiante antes do Tour, onde a concorrência seria mais forte e exigente.

– Tem a ver com a diferença de preparação, que também foi outra para o Tour, melhor, sem percalços, sem quedas… Eu estou otimista para a Vuelta, mas temos de ter os pés bem assentes na terra. Treinei duas semanas e meia sem limitações [após a queda]… é pouco. Obviamente, tenho uma temporada por trás, mas uma paragem de dez dias, sem treinar, sem bicicleta, sem fazer nada. Claro que o corpo ressente-se. Contudo, estou numa forma boa, aceitável, sinto-me bem na bicicleta. Espero ir em crescendo, semana após semana. Creio que podemos estar otimistas, ainda que sempre com os pés assentes no chão, como já disse, e focados no importante, que é na corrida. E poupar-me ao máximo.

– Exato, na corrida vai ser poupar ao máximo…

– Estava a falar que a preparação não correu bem, obviamente. Quantos dias é que esteve completamente parado e depois a treinar sem condicionalismos?

– Na verdade, a recuperação da fratura correu bastante bem.  Mas a preparação é que foi curta, não é? Estive 10 ou 11 dias sem tocar na bicicleta. Em repouso total. Depois comecei a pegar nela, a andar de bicicleta um pouquinho e tal, mas nada de especial. Só mais tarde, em termos de treino, a treinar, efetivamente, foram duas semanas e meia. Senti-me bem e creio que estou bem. Mas claramente não é uma preparação longa, sólida. Estou confiante, mas é um desafio grande. São três semanas ao mais alto nível.  Contra Jonas Vingegaard, que está em grande forma. Está sempre… Então, temos de ter algum recato, sermos cuidadosos na abordadem à corrida. Mas vou confiante à Vuelta, e acho que estou de uma forma boa.

João Almeida em ação no último Tour de França, ao serviço de Tadej Pogacar

– Afinal para a equipa ter apostado em tê-lo como líder, ou colíder, é porque dá-lhe garantias, correto? Apesar da confiança moderada, a aposta é para a classificação geral.

– Sim, exato. Já temos uma relação [com os dirigentes da equipa UAE Emirates] há alguns anos. Já todos nos conhecemos, já conhecem o nosso valor. Também tenho demonstrado este ano – mas não só este ano, em todos os anos – a minha consistência, a minha forma física, e que sou uma garantia. E por isso, creio que podemos começar esta Vuelta confiantes, de que estaremos bem, mas ao mesmo tempo com a boa noção da realidade, de que nem tudo pode correr na perfeição. Vou à luta, sem medo.

– Como é que definiria, em percentagem, o nível de forma física e anímica antes da partida a Vuelta, quando comparado com outras corridas esta temporada?

– Diria, se calhar, uns 90 e pouco por cento. A forma é boa, mas não me sinto, assim, digamos, no meu melhor. No entanto, são três semanas, temos tempo para nos sentirmos a 100%, não é?! Porque é uma corrida muito longa e acabamos também por ir treinando e evoluindo durante a competição, dia a dia, semana a semana. Quando se começa com frescura física e um bom estado de forma, vamos melhorando e adquirindo uma melhor forma física ao longo da corrida. Por vezes, começamos já muito no nosso limite e com algum cansaço, e acabamos por terminar mal e cansados.

Vitória em etapa e na geral na Volta à Suíça

É também saber gerir isso, e lá está, poupar ao máximo os dias que derem para poupar, que derem para recuperar. E nos dias de dar tudo, talvez fazer diferenças, quem sabe. Apostar tudo e sem medo.

– Mas a Vuelta vai já começar intensa e vai haver poucos dias para poupar, para recuperar, certo?

– Sim, a Vuelta é sempre uma corrida muito explosiva, muito dura. Não há, digamos assim, muitas fases de etapas planas, para os sprinters, ou sempre com subidas, é uma mistura total. Temos dez chegadas em alto, mas estão espalhadas pelas três semanas. Etapas assim, que são aquelas etapas que pode acontecer muita coisa ou pode não acontecer nada. Temos de que estar sempre atentos, a surpresas. Portanto, é um bocadinho todos os dias de dureza. A Vuelta é sempre assim, é uma corrida especial. Eu gosto da Vuelta.

– A Visma-Lease a Bike e Jonas Vingegaard irão com tudo, com uma superequipa. É quase a versão, não digamos B, mas A ponto 2 da do Tour. Vão com muita ambição. Depois de ter conseguido vencer o Tour, Vingegaard parece não querer facilitar na Vuelta. Como é que estão a encarar essa concorrência na UAE Emirates? 

Progressos na montanha na base do sucesso de João Almeida esta temporada

– Sim, ele [Vingegaard] leva uma equipa muito forte para todos os terrenos. Já toda a gente estava à espera. Mas creio que acaba por me favorecer. Com uma equipa forte, pretenderão assumir a corrida e endurecê-la, e eu acho que isso é uma coisa que me favorece. Por outro lado, levamos uma equipa igualmente forte, ou quase tão forte como a deles. A nossa equipa tem corredores que confiam em mim e sabem o que eu valho. Portanto, creio que a presença de Vingegaard e de uma Visma muito forte só me ajuda e torna a corrida mais dura, e um bocadinho mais controlada também.

O que acontece às vezes, é que a corrida é deixada à mercê de todos os corredores. Quando há equipas fortes, acaba por ser mais fácil haver uma corrida mais controlada, para controlar a fuga, etc. Acaba por facilitar-nos aqui a vida um bocadinho.

– Falava da sua equipa. É uma equipa em que confia plenamente?

– Sim, exato. Levo corredores que já me acompanharam em muitas corridas este ano, com os quais ganhei. Corredores que já conheço há muitos anos. Portanto, temos uma equipa muito coesa, em que trabalham todos muito bem. Vou estar sempre muito bem acompanhado em todos os dias, de certeza.

A série de três vitórias em corridas por etapas do WorldTour começou na Volta ao País Basco

– Crê que vai correr igualmente bem a coliderança com Juan Ayuso?

– Sim, damo-nos bem. Já tivemos alguns pequenos atritos no passado, mas as coisas resolvem-se sempre no momento, e fica tudo resolvido. É natural, às vezes, acontecer esse tipo de coisas, mas, no geral, nós damos-nos bem e vamos com o objetivo de ter sucesso como equipa, de ganhar etapas, de tentar ganhar a Vuelta. Creio que tem tudo para correr bem.

– Não vai ser uma corrida entre ambos pelo protagonismo da equipa, pela tomada da liderança?

Juan Ayuso (UAE Emirates) venceu isolado a 7.ª etapa do Giro 2025, antes de… desistir

– Eu penso que não. Tem que haver respeito mútuo, obviamente. (…) Mas como temos um adversário bastante forte, se pudermos jogar com duas cartas para cansar o nosso adversário, creio que será uma grande vantagem. Há esse lado positivo.

– Esta edição da Vuelta tem um percurso ainda mais montanhoso. Há alguma etapa especialmente dura que queira destacar? E o contrarrelógio por equipas na quinta etapa, favorece-vos? 

– Sim, mas também favorece um bocadinho a Visma, eles têm uma equipa muito forte no contrarrelógio. Acho que estaremos meio equivalentes. Creio que [a discussão na vitória no contrarrelógio] deverá ser entre eles [Visma] e nós. Devemos ser as equipas mais fortes nessa prova.

– E etapas de montanha temos várias. Mas creio que o Angliru é a chegada em alto mais dura e mais longa.

– Sim, já fiz há dois anos, creio. É uma subida que eu gosto. Esperemos que esteja fresquinho, não esteja muito calor, porque se não vai ser… Se já é um inferno, ainda ficaria pior. Mas é uma subida que eu gosto. Ainda que, obviamente, penso que favorece um bocadinho mais o Vingegaard. Mas será sempre uma questão de pernas. Quem tiver as pernas mais fortes é quem chega lá acima primeiro.

João Almeida desiste do Tour. Foto: EPA/CHRISTOPHE PETIT TESSON

– Ainda sobre o último Tour. Ao autoavaliar o desempenho nos dias antes da queda, e já depois da desistência, e o declínio e o abandono de Remco Evenepoel, considera que a ambição do pódio em Paris, assumida por si antes da partida, poderia ter-se concretizado?

– Acredito que sim. Estou confiante no meu valor e nas minhas qualidades, e no que trabalho para estar na melhor forma. Acredito, sem dúvida, que poderia ter estado lá [no pódio], mas nunca iremos saber, porque não estava lá. Podemos sempre especular, mas há que estar lá e fazer o trabalho até ao fim. Acho que vamos ter de deixar para um próximo ano esse tal pódio…

– Mas que pódio? O pódio em quaisquer das grandes voltas ou o pódio do Tour?

– Para o próximo ano, não sei ainda o calendário, mas no próximo ano e no futuro, obviamente que o Tour é a grande corrida do ciclismo e todos queremos estar lá. Ano a ano, vamos ver como é que corre.

– Gostaria de regressar ao Giro em 2026, para ganhar?

– Logo se vê, depende do percurso e assim. Mas sim, gostava claramente de voltar ao Giro, mas também gosto de fazer o Tour… Quando chegar a altura decidiremos o calendário. No final do ano discutiremos e decidiremos o que acharmos que é melhor.

– Já assinou a renovação de contrato?

– Sim, vou continuar com a equipa mais anos. Já renovámos. É aqui onde quero estar.

– Quer confirmar quantos mais anos?

– Eu creio que é até 2028. Final de 2028, mas não tenho a certeza. O mais importante é sentir-me bem onde estou, e considero que devo continuar nesta equipa e continuar a evoluir nela. As coisas têm corrido muito bem, portanto, é isso… Vamos para mais uns aninhos.

Tadej Pogacar desfez-se em elogios a João Almeida no último Tour

– Como é que interpretou as palavras do seu companheiro de equipa Tadej Pogacar, durante a última semana do Tour e no que se seguiu, de alguma saturação, pelo cansaço físico, mas também de alguma fadiga psicológica, que o levou a afirmar que não pretende prolongar muito mais a carreira? 

– São palavras naturais, é um esforço grande, são muitos sacrifícios. É também já uma temporada longa. É natural haver esse cansaço psicológico. Mas também já começamos a ter uma certa idade, começámos muito cedo e ao longo dos anos estamos sempre mais perto da reforma, embora não saibamos quando é que chegará. Começamos a pensar e a ponderar quando é que será o melhor momento, etc. Normalmente, os corredores têm uma ideia de quando pretendem retirar-se, mas depois acabam sempre por mudar e vão sempre adiando, adiando, adiando os anos em que se reformarão. É uma vida de que gostamos. Quem está nisto é porque gosta mesmo, tem paixão pelo ciclismo e sabe bem fazer disto a nossa vida, e às vezes é difícil largar este mundo.

– Mas também implica muitos sacrifícios, correto. Lia a declaração do anúncio do fim de carreira de Michael Woods e ele falava na saúde e nas privações familiares…

– Sim, exato. Para a saúde mental e física, o ciclismo profissional é muito exigente, muito duro, e eventualmente todos acabamos por perceber quando é que é o momento ideal para pendurar as botas, como se costuma dizer, e passar à próxima fase da vida.

– Por se referir aos inícios de carreira madrugadores, que jovens corredores é que destaca a correr em Portugal? O sub-23 Lucas Lopes confirmou talento na recente Volta. Conhece-o?

– Sinceramente, não acompanho muito. Mas o Lucas é, de facto, o nome que mais se tem destacado no ciclismo jovem em Portugal. Certamente haverá mais atletas de boa qualidade e de bom futuro, mas ele é o que se tem destacado mais. É uma evolução natural, que esperamos que continue e que ele consiga um dia dar o passo para o estrangeiro, para continuarmos a mostrar a qualidade do ciclismo português.