Entre promessas de eficiência e progresso, é preciso refletir sobre o que se está perdendo com o uso indiscriminado da inteligência artificial: tempo, reflexão, criticidade e até mesmo o conhecimento.

1. A promessa sedutora da produtividade

É abrir o Instagram ou qualquer outra rede social e a gente se depara com uma profusão de referências, de propagandas e de um mar de gente vendendo, falando, anunciando, abordando ou tratando sobre algo relativo à inteligência artificial.

A nós, os destinatários e potenciais consumidores (quando não também “gurus” da IA), é vendida a urgência de aprender a interagir com a tecnologia, pois, segundo é prometido, seu uso nos abrirá um mundo novo de possibilidades, de riqueza e de sucesso em escala nunca antes imaginada: lado outro, restam o fracasso e o esquecimento para quem não aderir à lógica dessa nova esfera social feita de “prompts” bem escolhidos.

Essa propaganda toda tenta criar uma espécie de crença compartilhada que, de um lado, de forma irrefletida ou não, estabelece uma forma de senso comum da primazia da tecnologia e do outro reforça uma, não refletida, impressão de que o ser humano tornou-se inábil a fazer sozinho aquilo que ele fazia há bem pouco tempo atrás.

Avizinha-se algo parecido com a construção de um hábitus precário digital, bem ao estilo da análise feita por Jessé Souza, ao tomar de empréstimo a teoria de Bourdieu para explicar a desigualdade no Brasil e em países periféricos. Em um futuro próximo, o homem poderá ser julgado e avaliado, ainda que de modo inconsciente e não reflexivo, em razão da sua capacidade de interagir em maior ou menor grau com a inteligência artificial.

Afora os empregos potencialmente em risco pelo simples uso da IA, muitos mais ficarão ou poderão ficar de fora do mercado produtivo dada uma espécie de “analfabetismo” virtual, que se tornará, ou já é, fator de clivagem social. Isso, por se só, já é um bom motivo para uma reflexão crítica.

2. A lógica produtivista que tudo consome

O segundo ponto importante que se observa é que quando se fala em inteligência artificial, o foco é sempre na maximização da produtividade. As propagandas, na sua maioria ou totalidade, dizem: “Utilize a inteligência artificial para ser mais produtivo e mais efetivo”. Ou seja, não vemos ninguém falando do uso da IA – dessa nova e, se corretamente utilizada, bem-vinda tecnologia – para tornar a nossa vida mais aprazível: em suma, melhor.

Falta nas mensagens qualquer referência que sugira o emprego da tecnologia para facilitar nossas tarefas e, assim, sobrar mais tempo para fazer outras coisas não necessariamente produtivas.

Tudo isso nos faz pensar que a IA, pelo menos como anunciada e vendida, vem carregada do ideal do capitalismo neoliberal, não como uma ferramenta de libertação do homem, mas como uma nova engrenagem da espiral de imposição do padrão desejado de comportamento humano.

Fica parecendo, ou escancarado mesmo, que a tecnologia está aqui para nos tornar simplesmente mais produtivos, ser homens de sucesso: não para melhorar a nossa condição humana.

Ao refletirmos criticamente sobre isso, a leitura de Aiton Krenak vem a nosso auxílio, pois, como ele aponta em livro de mesmo nome: a vida não é útil. Ele critica o que denomina pensamento vazio de matriz moderna ocidental que não nos permite conceber a “ideia de viver à toa no mundo”, reputando o trabalho a razão de nossa existência. Para Krenak isso é um erro, pois “viver a experiência de fruir a vida de verdade deveria ser a maravilha da existência.” Em outras palavras: nosso valor não é (ou não deveria ser) medido meramente por nossa utilidade.

Com Krenak em mente, fazemos a seguinte pergunta: “Se a inteligência artificial pode facilitar certas atividades, por que incluir outras no seu lugar (porque se preocupar em produzir mais, ao invés de “curtir o lado bom da vida”)?

Ao longo do tempo temos notado que o progresso técnico-tecnológico humano pouco ou nada fez para que o homem trabalhasse menos. As simplificações da vida que vieram a reboque das criações modernas não fizeram com que nós tivéssemos semanas menores, mais curtas, de menos dias úteis trabalhados.

Vale destacar que os avanços nesta seara vieram às custas de lutas sociais e conquistas obtidas a duras penas, e não como uma consequência natural do progresso tecnológico. E a luta continua, basta ver a, atual, discussão a respeito da redução da jornada de trabalho prevista na CF/88.

3. O conhecimento substituído pelo uso da ferramenta

O terceiro ponto que pretendemos destacar é que são inúmeras as novas ferramentas de inteligência artificial, das mais diversas: muito além do simples ChatGPT, a mais conhecida delas. Acontece que aprender a usá-las nos impõe tempo. Afinal, não basta saber usar alguma IA. Temos que obter a otimização máxima do uso: senão, o recado é direto e claro: eu, você ou quem quer que seja irá perder para os demais.

Mas, o que se deve questionar aqui é quanto desse conhecimento relacionado unicamente ao uso da inteligência artificial acaba substituindo o conhecimento antes adquirido a respeito das áreas, propriamente, ditas em que a inteligência artificial é utilizada, para auxiliar ou substituir o humano.

Hoje em dia, deixamos de empenhar tempo para conhecer aquilo que nós realmente fazemos (ou deveríamos estar fazendo), para aprender como utilizar a ferramenta da inteligência artificial. Isso vale para advogados, médicos, engenheiros, administradores e tantas outras atividades. Então, o nosso conhecimento, que antes era voltado às questões humanas, a seus problemas e tentativas de solução, passa a ser um conhecimento meramente instrumental, voltado ao uso da máquina.

Certamente, isso gera uma perda inexorável da nossa capacidade de raciocinar: e, fatalmente, reduz a possibilidade de desenvolver senso crítico. O risco é a volta a um modelo de Fordismo recauchutado, só que, ao invés de estarmos a apertar parafusos, agora estamos aprendendo a fazer “prompts”, sem qualquer reflexão.

A arriscada esperança dos mais ávidos por tecnologia é que, ao fim de tudo isso, o conhecimento deixe de ser produzido pelo homem, para ser construído pela máquina. Difícil pensar em futuro mais distópico do que esse. Talvez eles não tenham lido, na infância, o livro de Ruth Rocha, A máquina maluca, para saber que contar demais com as incríveis invenções humanas pode se tornar um tiro pela culatra.

Nessa obra ficcional, a fé das pessoas em uma máquina que tudo fazia, alimentada pelo alívio inicial dos afazeres diários, torna-se depois fonte de maior agonia, quando elas se veem postas a realizar os desejos do invento. Portanto, vale o alerta: sempre que você consumir mais neurônios para fazer os prompts do que para pensar a solução do problema que te fez usar a IA, é ela quem está, verdadeiramente, te usando.

4. A crítica silenciada pela resposta pronta

O conhecimento se adquire ao longo de um percurso muitas vezes extenuante e difícil, que constrói o aprendizado. Ele não está pronto e acabado nos esperando no final do caminho, mas é constituído passo a passo. Esses atalhos que a inteligência artificial promete, ainda que possam ser muito tentadores e pragmaticamente interessantes, devem ser analisados sempre do ponto de vista crítico, sem deixar de lado o que está se perdendo na formação do caráter, moral e ética de cada um de nós.

Basta pensar, para citar apenas uma das necessidades do convívio humano em sociedade, que o produto da IA não é fruto de uma atividade discursiva. Não há, realmente, diálogo na comunicação entre pessoa e máquina. Não há um confronto real de ideias. Ocorre que uma sociedade realmente democrática pressupõe espaço de diálogo, conforme nos ensina Habermas, aonde todos possam potencialmente expor sua compreensão de mundo e refletir sobre a dos outros. Todavia, não há consenso ou dissenso quando todos se calam e somente a máquina fala por nós.

É importante ter tempo para pensar sobre aquilo que se está aprendendo, para poder formar nossa opinião. Isso fica prejudicado quando o conteúdo já vem pronto: enfraquecendo a real formação de um juízo crítico, essencial para a construção de uma sociedade mais justa.

A resposta da máquina não vai resolver todas as nossas angústias, até porque o chat gpt, ou qualquer inteligência artificial que exista, carece de alteridade. Ela não sente e não tem, de forma alguma, como se colocar em nosso lugar e ter empatia: se ela segura nossa mão, como visto em reportagem recente, não há troca de calor e energia, mas um toque frio como o aço do ciborgue que se avizinha.

Conclusão: Entre o instrumental e o humano

Não se pretende aqui lançar uma cruzada contra a IA, o que seria de uma leviandade e ineficácia absurdas. O progresso não é em si um vilão, mas, sim, a ideologia que ele traz consigo e que ao mesmo tempo o alimenta. A avidez pelo progresso é nefasta quando nos dessensibiliza e nos torna cegos aos prejuízos sociais causados pela crença de sua inexorabilidade.

Muita coisa boa a tecnologia e os avanços trouxeram, tais como vacinas, computadores, carros e aviões, mas em proporcional medida foram também fonte de sofrimento, como nos ensina Walter Benjamin, nas teses sobre o conceito da história. O filme Oppenheimer, ganhador do Oscar de 2024, retrata bem o dilema humano que ocorre ao definirmos qual será o emprego de nossos inventos, descobertas e avanços científicos. A obra cinematográfica nos mostra que a divisão do átomo, que permitiu ao longo do tempo criar novas fontes de energia, em contrapartida, serviu para desenvolver a mais letal das armas.

A civilização capitalista nos impôs uma racionalidade técnica que acarreta automatização, conformismo e alienação, conforme nos alerta Antônio C. Wolkmer. Essa racionalidade muitas vezes, nega o que nos faz essencialmente humanos. Assim, é fundamental questionar, criticamente, as mensagens expressas ou insidiosas que recebemos diuturnamente a respeito da IA, e, ao assim fazer, resignificar os potenciais benefícios e a finalidade de tanta inovação, sopesando também seus malefícios.

Precisamos, como enfatiza Wolkmer, substituir o racionalismo puramente técnico, por um racionalismo crítico, aberto, franco e voltado para a análise das reais condições do convívio humano. Se for, simplesmente, para tornar o homem mais produtivo e, paradoxalmente, menos necessário, tem alguma coisa errada aí. Vale aqui o velho conselho empregado para tudo que em excesso faz mal: consumir com moderação.

E, para não parecer que falamos apenas para os outros, confessamos que ao escrever este artigo sem recorrer ao chatgpt, foi necessária muito perseverança para conter a forte e presente tentação que acomete, hoje em dia, cada um de nós, uns mais outros menos. Certamente, o texto ficaria pronto mais rápido, e, com muita chance, melhor escrito. Mas a reflexão ao escrever e escolher cada palavra, fazer e refazer uma frase ou um parágrafo, teria se perdido.

Isso não significa que recusamos toda e qualquer ajuda, o que representaria negar cegamente o lado bom da tecnologia. Tanto é assim que, de tudo aqui escrito, apesar da quase totalidade ter sido produto de processo criativo humano – com seus erros e acertos- o título e subtítulo do artigo e de cada tópico foi, gentilmente, sugerido pela IA: nossa amiga para as horas de necessidade, não para todas.