Parecia uma premonição. Quando, no final de Novembro, o projecto LIFE Aegypius Return apresentou os bons resultados obtidos nas diferentes colónias de abutres-pretos (Aegypius monachus) em Portugal, a sua coordenadora, Milene Matos, refreava o entusiasmo, dizendo: “Não esfregamos as mãos de contentes, porque basta um incêndio, uma grande tempestade, uma qualquer situação numa das colónias para se reverter estes dados.” O pior aconteceu na mais pequena e frágil colónia do país, a do Parque Natural do Douro Internacional, violentamente afectada por um incêndio que começou a 15 de Agosto. Perderam-se ninhos e o campo de alimentação, e uma cria morreu. Agora, pede-se ajuda.

Os dados do ano passado não podiam ser mais animadores. Depois de se ter descoberto uma nova colónia, a quinta, encontrada na Vidigueira, o número de casais nidificantes a nível nacional estimava-se entre 108 e 116 (dois anos antes, não iriam além dos 40), com 48 a 49 crias “recrutadas para a população”, ou seja, que sobreviveram até se tornarem independentes. Havia ainda um aumento de casais em todas as colónias e o sucesso reprodutor também aumentara, ainda que de forma modesta.

Uma evolução que já permitira retirar a espécie da categoria Criticamente em Perigo, passando a estar classificada como Em Perigo, na actualização do Livro Vermelho feita em 2023. No final do ano passado, Milene Matos olhava para tudo isto, ainda que com cautelas, dizendo: “Não sendo uma vitória absoluta, é uma conquista muito grande. E [a espécie] está a ter uma resposta mais rápida do que estávamos a contar. A duplicação que apontávamos para 2027, a data do fim do projecto, já aconteceu”.

Esta quinta-feira, ao telefone, o tom era bem diferente. Longos suspiros e palavras tristes marcavam o tom da responsável, ao dizer perante uma imagem do Parque Natural do Douro Internacional sem vegetação à vista e o solo totalmente cinzento: “Isto é um parque natural que é um cemitério. Para nós é como se tivéssemos perdido um membro da família, estes animais tinham nome.”




O contentor de apoio ao projecto foi completamente destruído pelas chamas
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A mais pequena colónia de abutres-pretos do país foi brutalmente afectada pelos incêndios. Dos oito casais reprodutores ali identificados (cinco do lado português, três do lado espanhol), com cinco crias, não se sabe o paradeiro de quase nenhum. Os adultos não estavam marcados nem anilhados e o destino da única cria marcada em Junho, que começara a voar há poucas semanas, foi o pior: foi encontrada morta esta manhã, por complicações que se prenderão com a inalação de fumos causados pelo incêndio.

Além disso, dois dos oito ninhos arderam completamente e os outros dois de forma parcial. As quatro plataformas-ninho instaladas para potenciar a nidificação e permanência da espécie na região, também foram afectadas. O campo de alimentação em frente a uma jaula de aclimatação, apesar de terem sido cumpridas todas as regras e estar completamente limpo, também ardeu, a jaula teve danos ligeiros, mas o contentor de apoio técnico, que funcionava como enfermaria e centro digital de videovigilância das instalações, perdeu-se por completo.

Animais salvos

No meio de tanta devastação, a única notícia positiva foi o facto de a actuação rápida dos envolvidos no projecto terem conseguido retirar, atempadamente, os seis abutres-pretos que se encontravam na jaula de aclimatação. “São crias do ano passado, sem território definido, que recolhemos por todo o país e que entraram num centro de recuperação. Em vez de as devolvermos logo [à liberdade], passaram uns meses a fidelizar-se ao Douro, para ver se se instalavam ali. A ideia era serem libertadas em Outubro, mas agora não podemos. O território que conhecem não existe. Mesmo os adultos e crias que possam ter sobrevivido, não têm neste momento habitat. Nem alimento, nem locais de alimentação. É uma zona inóspita”, explica Milene Matos.




O resgate atempado das crias na jaula de aclimtação permitiu que sobrevivessem ao incêndio
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Por isso, há o receio real de que até os casais que já eram residentes no Douro Internacional, mesmo que tenham sobrevivido, possam não regressar. Sobre os que foram salvo da jaula de aclimatação ainda não há decisões sobre o que será feito. O que se sabe é que, apesar da desolação e do receio que todo o trabalho bem-sucedido dos últimos anos se tenha perdido, baixar os braços não é opção.




No dia seguinte ao resgate, a área em torno estava queimada e a jaula sofrera danos
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É preciso agir rapidamente para repor habitat e as bases do projecto. E para isso é preciso fundos – 30 mil euros, nas contas do projecto, para o “penso-rápido” que permitirá, pelo menos, manter a esperança de que os abutres-pretos regressem ao Douro. “É o valor de que precisamos para as despesas mínimas para tentar repor alguma normalidade – repor habitat, pastagens para os rebanhos, comprar sementes, instalar plataformas-ninho artificiais, pôr a funcionar a nossa logística de poio”, explica Milene Matos. O projecto lançou por isso um crowdfunding para tentar conseguir esses fundos, já que o apoio inicial dado pelo programa LIFE ao projecto não é repetível.

Mais riscos

Os próximos dias serão ainda de angústia, na expectativa de tentar perceber o que aconteceu aos membros da colónia do Douro. Sem marcação – marcar adultos é muito difícil, pelo que nenhum deles estava, sequer, anilhado ou tinha equipamento GPS -, não se sabe o que lhes aconteceu. Se morreram, se fugiram acompanhados pelas crias ou se estas ficaram para trás. Se assim foi, dada a sua tenra idade e inexperiência, as hipóteses de terem sobrevivido não são animadoras. Uma delas ainda nem tinha começado a voar, segundo os últimos dados recolhidos pela equipa, embora se previsse que o pudesse fazer em breve. Só se sabe que não estava no ninho, depois da passagem do fogo.




A cria que foi marcada em Junho foi encontrada morta, em resultado da inalação de fumo causada pelo incêndio
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Por enquanto, há que aguardar e trabalhar. E esperar que a devastação não aumente. As colónias da Herdade da Contenda e da Serra da Malcata também têm estado sob ameaça de incêndios próximos, e do lado espanhol, pelo menos 60 ninhos da Serra de São Pedro, na província de Cáceres, também arderam.

Ainda assim, o projecto salienta “a solidariedade” demonstrada por diferentes entidades e cidadãos, na tentativa de salvar o abutre-preto e que, no caso do Douro Internacional, graças a uma rápida intervenção conjunta da Palombar, Instituto Nacional da Conservação da Natureza, a Vulture Conservation Foundation, Faia Brava, Hospital Veterinário da UTAD e CIARA – Centro de Interpretação Ambiental e Recuperação Animal, permitiu salvar atempadamente das chamas os seis abutres da jaula de aclimatação. Espera-se que esse apoio possa ser canalizado agora com os fundos necessários ao recomeço.