Uma pesquisa da Universidade de São Paulo (USP) avaliou a adesão de pessoas com hipertensão arterial ao tratamento medicamentoso e encontrou uma discrepância entre os relatos e os exames laboratoriais. Apesar de 90,1% dos 253 participantes afirmarem que tomam remédios para controlar a pressão alta, as substâncias foram detectadas na urina de apenas 32,4% deles. O trabalho é considerado inédito no Brasil.
Baixa adesão ao tratamento de hipertensão é uma realidade no Brasil, o que causa preocupação entre especialistas Foto: Kurhan / Adobe Stock
A diferença entre os dados relatados e os laboratoriais está alinhada ao alto índice de pessoas com a pressão arterial descontrolada, segundo a autora do estudo e enfermeira Mayra Pádua Guimarães. A hipertensão atinge cerca de 27,9% da população brasileira, de acordo com dados de 2023 da Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel).
Segundo Mayra, trata-se de um problema de saúde pública, observado também em outros países. “Não adianta a gente lançar mais droga, falar mais de medicamentos, se o paciente não está tomando o remédio. O problema está no início”, afirma.
De acordo com o médico João Roberto Gemelli, presidente do Departamento de Hipertensão Arterial da Sociedade Brasileira de Cardiologia (DHA/SBC), que não está envolvido na pesquisa, a baixa adesão ao tratamento é uma realidade frequente nos consultórios.
Para ele, a ausência de sintomas, o esquecimento, o receio de efeitos adversos, a crença de que o remédio não é necessário e o custo do tratamento são fatores que costumam comprometer a adesão. Além disso, o espaçamento entre as consultas e a troca frequente de médicos na Atenção Básica podem dificultar a construção de um vínculo entre o paciente e o profissional de saúde.
O grupo pesquisado era formado, em sua maioria, por mulheres (62%), pessoas brancas (63%) e com idade média de 65 anos. Do total, 7,5% eram tabagistas, 40% consumiam bebida alcoólica, 38% eram sedentários, 81% apresentavam sobrepeso ou obesidade e 45% utilizavam de três a quatro anti-hipertensivos.
Os riscos de não tratar a hipertensão
Quando não tratada corretamente, a hipertensão pode causar problemas cardiovasculares, como infarto, insuficiência cardíaca e arritmias, além de aumentar o risco de acidente vascular cerebral (AVC) e acelerar a perda da função renal, podendo levar o paciente à hemodiálise.
“Quando mal controlada, a pressão alta pode favorecer várias outras patologias, que, na maioria das vezes, quando não ceifam a vida do indivíduo, podem deixar sequelas”, resume Gemelli.
Como foi feita a pesquisa
A pesquisa sobre a adesão ao tratamento da hipertensão foi realizada com 253 pacientes da Unidade de Hipertensão da Disciplina de Nefrologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP e usou métodos indireto e direto de avaliação.
Na primeira etapa, os participantes preencheram informações sobre perfil, hábitos e histórico de saúde, além de informar os medicamentos prescritos. Em seguida, responderam a quatro perguntas da Escala Morisky-Green, que avalia a adesão de forma indireta. Foram considerados aderentes somente aqueles que responderam “não” a todas as questões. As perguntas eram:
- Você alguma vez se esqueceu de tomar seu remédio?;
- Às vezes, você é descuidado para tomar seu remédio?;
- Quando você se sente melhor, às vezes, você para de tomar seu remédio?;
- Às vezes, se você se sente pior quando toma seu remédio, você para de tomá-lo?
A partir apenas dos relatos, 90,1% dos participantes foram considerados adeptos do tratamento. Porém, depois da análise da urina (o método direto de avaliação), esse percentual caiu para 32,4% – vale ressaltar que os voluntários só foram informados sobre esse exame no dia em que responderam ao questionário.
Para fechar o resultado, foi considerado aderente ao tratamento quem estivesse tomando pelo menos 80% da medicação prescrita, percentual mínimo adotado na maioria dos países desenvolvidos. Na prática, se o paciente tivesse cinco anti-hipertensivos prescritos, por exemplo, ao menos quatro precisariam ser detectados na urina.
Apesar dos resultados da pesquisa estarem alinhados à prevalência de adesão nacional e internacional, Mayra ressalta que o estudo tem suas limitações, como a possibilidade de o paciente ter deixado de tomar o remédio apenas no dia da coleta de urina. No entanto, ela afirma não acreditar que isso tenha ocorrido em 70% dos casos em que o medicamento não foi identificado no exame. “Existe uma margem de erro, mas uma margem pequena”, reforça.
Além disso, devido à chamada meia-vida do medicamento, mesmo que o paciente tenha se esquecido de tomar o remédio no dia da coleta, poderia apresentar a substância no organismo. Esses dois cenários, segundo a pesquisadora, podem levar tanto à classificação errada de falso aderente como de falso não aderente.
Outro ponto é que a avaliação indireta, por meio do questionário, está sujeita ao viés de memória do indivíduo, o que pode resultar em respostas imprecisas, ainda que não intencionais.
Caminhos para uma mudança de cenário
Gemelli aponta que, por ser uma doença assintomática, os pacientes hipertensos tendem a abandonar o uso contínuo dos medicamentos ao longo do tempo, o que pode levá-los novamente a quadros graves de pressão elevada. Ressalta ainda que interromper o tratamento, mesmo por poucos dias, também pode provocar complicações.
Uma das estratégias para melhorar a adesão é, sempre que possível, prescrever uma medicação de dose única diária, com ação prolongada de 24 horas e poucos efeitos colaterais. Se, além disso, tiver baixo custo, o médico considera o “remédio ideal”.
Outra medida é simplificar o tratamento, concentrando o uso de medicamentos para diferentes doenças em um mesmo horário, quando indicado pelo profissional de saúde. “O médico não pode só fazer o diagnóstico e prescrever o remédio. Ele precisa discutir a doença, educar o paciente e convencê-lo a seguir o tratamento, explicando o que é, suas complicações e por que a hipertensão não tem cura”, afirma.
As consultas regulares também são fundamentais. Para pacientes com pressão controlada, o ideal é que elas ocorram a cada três ou seis meses. Já para aqueles com quadros mais graves, o recomendado seria visitar o médico a cada 30 dias ou dois meses.
Segundo Gemelli, as diretrizes indicam manter a pressão entre 130/80 mmHg, mas valores abaixo de 140/90 já são aceitáveis.
Outras recomendações incluem:
- Colocar um alarme para o horário do remédio;
- Organizar as doses em uma caixa semanal de comprimidos;
- Ter reservas do medicamento no carro, no trabalho, na bolsa ou na mochila;
- Em caso de esquecimento, tomar a dose assim que lembrar e retomar o horário habitual no dia seguinte;
- Procurar o médico se a pressão arterial estiver alterada.