De algumas cinematografias nacionais, diz-se que têm dificuldade em refletir as dinâmicas sociais do seu próprio país — a produção portuguesa poderá ser um caso a justificar uma análise atenta. Essas cinematografias mostram ainda mais dificuldade em espelhar tais dinâmicas através do registo cómico — também aí, o caso português merece ser analisado. Pois bem, nada disso constitui um problema no interior da produção de Itália. A partir desta quinta-feira nas salas, eis mais uma prova simples e esclarecedora: Férias de Agosto, de Paolo Virzì, consegue ser, de uma só vez, um espelho crítico da sociedade italiana e uma comédia de contagiante energia.

Em boa verdade, a expressão “espelho crítico” é discutível. Não se trata de propor uma tese social, nem sequer de favorecer a ideia de que um filme existe como um relatório “sociológico” sobre o que quer que seja. Na melhor tradição de um cinema que, para todos os efeitos, sempre foi genuinamente social (será preciso relembrar o valor histórico e simbólico do neorrealismo?), aquilo a que assistimos em Férias de Agosto envolve uma hábil criação de personagens e, em paralelo com o trabalho de argumento, a atribuição dessas personagens a atores cuja alegria de representar continuam a surpreender-nos.

O filme organiza-se como um labirinto “coral” em que, não havendo um centro dominante, ninguém é meramente decorativo ou anedótico. Partilhando a autoria do argumento com o seu irmão Carlo Virzì e ainda Francesco Bruni, o realizador coloca em cena duas famílias que, nas férias de verão, se cruzam numa ilha do mar Tirreno.

Duas personagens polarizam os acontecimentos: Sandro Molino (interpretado por Silvio Orlando, nosso conhecido de alguns filmes de Nanni Moretti), veterano da luta antifascista que não quer deixar morrer as memórias políticas que o cenário evoca, e Sabry Mazzalupi (Anna Ferraioli Ravel), vedeta das futilidades “sociais” da internet que vai casar com aquele que é uma espécie de empresário, encenador e explorador das suas proezas em rede.

Construído através de cenas curtas, mas sempre significativas (o trabalho de montagem distingue-se por uma agilidade sem ostentação), Férias de Agosto evolui como um turbilhão de humor em que, a pouco e pouco, se vai insinuando um misto de melancolia e amargura — e lembramo-nos da herança plural de cineastas como Mario Monicelli (1915-2010) e Dino Risi (1916-2008), autores de títulos emblemáticos como Gangsters Falhados (1958) e A Ultrapassagem (1962), respetivamente.

No limite, está em jogo uma verdadeira parábola sobre a luta de classes. Não em termos panfletários, muito menos partidários, antes como paciente observação de um estado de coisas em que as relações mercantis se vão sobrepondo aos restos de solidariedade ou compaixão humana. Observe-se a pobre Sabry, caricatura muito realista das mais patéticas influencers, condenada a publicar a sua imagem diária de “alegria de viver” enquanto vai chorando as agruras do seu destino.

Outra vez as férias

Férias de Agosto (título original: Un Altro Ferragosto) não é apenas um relato consciente das memórias sociais (de outros modos de viver) que as personagens transportam. Elas pertencem também à memória da própria filmografia de Paolo Virzì, já que o novo filme resulta do reencontro com personagens e cenários que ele filmara em Ferie d’Agosto (1996), com um argumento em que Francesco Bruni também já participava.

Assim, além de Silvio Orlando, encontramos os “repetentes” Sabrina Ferrili, Laura Morante, Gigio Alberti e Claudia Della Seta. Sem esquecer a presença exuberante de Christian De Sica (filho de Vittorio De Sica) no papel obrigatório do “engenheiro” — isto porque, bem entendido, não há comédia italiana que dispense o requinte político de um glorioso “engenheiro”…