Quase uma autobiografia de Ray Bradbury, cujos 105 anos de nascimento são celebrados neste 22 de agosto, Recordações já tem previsão de data para chegar nas livrarias brasileiras. No início de 2026, a Biblioteca Azul publica a coletânea que reúne a correspondência trocada entre o escritor clássico da ficção científica e familiares, editores e figurões da literatura e do cinema, como Graham Greene, Stephen King, Arthur C. Clarke, François Truffaut e Federico Fellini.
Por meio dos documentos se revelam as ideias, os gostos, interesses e a personalidade do autor de Fahrenheit 451, livro cujo título inspirou o nome desta revista. Leia a seguir uma das cartas incluídas no livro, destinada a Philip K. Dick, também escritor de ficção científica.
Trecho de ‘Recordações’
Ray Bradbury
10750 Clarkson Rd.
Los Angeles 64, Califórnia
22 de janeiro de 1951
Caro Dick,
Não posso dizer o quanto fiquei satisfeito com sua carta sobre “O bombeiro”. Foi especialmente gratificante porque essa novela ocupou boa parte do meu tempo um ano atrás e contém algumas das minhas convicções mais fortes. Ainda há muito a ser dito; há coisas que tive que deixar de fora da história porque não queria dar muito na cabeça de quem me lê com uma porção de pregação. Se “O bombeiro” algum dia for publicada em livro, uma coisa que eu gostaria de reenfatizar e detalhar é o fato de que o rádio contribuiu pra nossa “crescente falta de atenção” simplesmente porque sintonizamos uma estação, ouvimos cinco minutos de alguma coisa, dez minutos de outra, meia hora disso, uma hora daquilo. Essa espécie de jogo da amarelinha quase impossibilita as pessoas, inclusive eu, de se sentar e ler um romance de novo. Viramos pessoas que só leem contos ou, pior que isso, pessoas que leem rapidamente. Tenho que me forçar a encarar os romances. Uma vez que comecei, vou embora, mas o capítulo inicial é o mais difícil. O que é assustador. Além disso, quero reenfatizar o fato de que não temos mais tempo para pensar. A grande centrífuga do rádio, da televisão, dos filmes pré-calculados etc. não nos dá tempo de “parar e fitar”. Nossa vida está cada vez mais programada o tempo todo, não há espaço para caprichos, e o capricho é a essência do homem, ou deveria ser o minúsculo núcleo feliz em torno do qual suas tarefas mundanas podem ser reunidas. Mas chega disso. Fico feliz que minha história tenha feito você parar e pensar em algumas de suas ideias. Se apenas algumas poucas pessoas fizerem isso, ficarei muito contente. Fico feliz também que você tenha gostado da história da Esquire; foi escrita nove meses atrás em meio a um ataque de desespero à meia-noite, depois de uma viagem particularmente deprimente pelo jornal e pelas mentes dos meus amigos.
Como você disse, a f-c pode ser a forma mais empolgante do mundo hoje. É a única remanescente na qual é possível dizer o que realmente se pensa do mundo sem ser chamado de comunista. O espetáculo de “bruxaria” neste país hoje é terrível e repugnante. Não tenha dúvidas, Dick, você está na minha turma, e tem estado na minha turma desde a publicação de sua primeira história. Minha esposa e eu elegemos você como quarterback dois minutos depois de terminar aquela primeira história. (Não parecemos Hemingway com seus termos esportivos?) Espero que você continue trabalhando e se desenvolvendo e se lembre que hoje existem apenas dois editores inteligentes na área, ou pelo menos que usam, ou tentam usar, sua inteligência; essas pessoas são H. L. Gold e Boucher-McComas, que considero uma só pessoa. As outras revistas pulp vão tentar, ou pelo menos tentavam me forçar, a lhe dizer o que escrever, como escrever, seguir fórmulas, se manter fiel ao que é familiar etc. Mas você deve encontrar seu próprio caminho, seguir no seu próprio tempo e escrever bem o tempo todo. É melhor, como você já sabe, escrever dez histórias boas por ano do que 36 ruins. Muitos escritores na área não têm respeito, nem amor, nem apreço pela escrita como arte ou pela escrita como literatura. Essas pessoas da “versão única” nada mais são que trabalhadores diários, e você nunca deve se deixar enganar pela conversa superficial delas sobre lucros e vendas rápidas. Sei que este conselho é supérfluo para você, mas sinto que devo enfatizá-lo de novo porque, entre 1941 a 1947, recebi cartas de um antigo agente meu e dos editores da tws e da Weird Tales que diziam coisas como: “Pelo amor de Deus, pare de fazer essas coisas tão fora da caixinha. Queremos um pouco da velha fórmula do ‘espetáculo’. Queremos alguns fantasmas como os fantasmas normais. Você está tentando se aniquilar?” Nem é necessário dizer que continuei me divertindo, escrevendo o que mais me agradava, o que me era mais caro e tocava mais fundo em meu coração. Apenas quando faz desse jeito é que estará sendo um indivíduo. Só assim você vai poder ser feliz.
Espero que sempre seja feliz e contente por viver consigo mesmo, Dick, pois teve um começo na escrita muito melhor do que eu há dez anos, se você se der ao trabalho de dar uma olhada nas minhas primeiras histórias, que eram bastante ilegíveis. Lembre-se que meus pensamentos estão com você e que a área precisa muito de talentos originais para compensar todo o lixo de segunda mão que é publicado mês após mês. Esta carta começou como uma nota de agradecimento e se transformou em uma História da Conquista do México. Digo aqui mais uma vez o quanto gostei de sua bela carta. Estarei acompanhando seu trabalho todos os meses. Minhas bênçãos.
Um abraço,
Ray