Moradores locais de várias cidades europeias denunciam como o turismo está a transformar as cidades em “museus a céu aberto”. Uma cidade portuguesa é apontada como um exemplo de gestão do turismo de massas

Enquanto manifestantes tomavam as ruas de Espanha, interrompiam o casamento de um bilionário em Veneza e até causavam o encerramento do Louvre devido a uma revolta dos funcionários contra a sobrelotação, Noel Josephides observava tudo com uma frase em mente: eu avisei.

“Eu podia ter dito há 10 anos que isto acabaria por acontecer”, começa por afirmar. “E eu disse. Eu disse: ‘Isto vai ficar fora de controlo’.”

Noel Josephides é o presidente de longa data da Sunvil, uma operadora turística sediada no Reino Unido que, desde 1970, leva britânicos abastados de férias. Noel também já foi presidente da ABTA e da AITO, ambas entidades do setor de viagens do Reino Unido, o que o torna uma das grandes figuras do turismo europeu.

Noel diz que previu o atual colapso do excesso de turismo na Europa.

“Eu avisei que iríamos enfrentar enormes problemas no futuro”, diz, recordando um discurso que proferiu na convenção anual da ABTA, realizada em Dubrovnik, Croácia, em 2013.

Noel fez esse aviso quando a economia partilhada — liderada no setor de viagens pela Airbnb — estava a crescer rapidamente em toda a Europa. A sua preocupação, no entanto, não era apenas com os alugueres de curta duração.

Na altura, previu uma tempestade perfeita: companhias aéreas low cost em rápida expansão, a trabalhar em conjunto com o aumento dos alugueres de curta duração, para criar uma vasta nova capacidade de férias, reduzindo os preços e inaugurando uma nova era de viagens low cost em grande escala.

É claro que, como operador turístico, Noel trabalha em concorrência direta com os alugueres de curta duração e o planeamento independente de viagens que as companhias aéreas low cost incentivam. No entanto, hoje, Noel parece uma figura de Cassandra — ele previu o caos, mas ninguém agiu. Agora, os seus piores receios estão a ganhar forma.

“As populações locais estão certas”, diz, referindo-se aos protestos crescentes em vários países da Europa. “Está fora de controlo. Estou do lado dos manifestantes, mesmo que isso afete o meu negócio.”

24 de abril de 2020, em Barcelona, Espanha. Quase ninguém passa pela Plaza Real, no famoso bairro gótico, em plena pandemia covid-19. (Matthias Oesterle via Getty Images)

“Um salmão a nadar contra a corrente”

A situação na Europa neste verão está muito longe das ruas vazias e das águas límpidas do verão de 2020. Durante a pandemia, muitos destinos prometeram reinventar o turismo para melhor. Todavia, assim que as restrições de viagem foram levantadas, as coisas rapidamente voltaram ao que eram antes — e, em muitos casos, pioraram, graças ao que ficou conhecido como “viagens de vingança”.

Para alguns moradores locais, a memória do confinamento assumiu um brilho idílico.

“Lembro-me de caminhar pelas ruas muito próximas a Las Ramblas e ouvir o canto dos pássaros e os sinos das igrejas”, descreve Maite Domingo Alegre, que vive em Barcelona. “Nunca tinha percebido que os sinos tocavam. Mas agora já não consigo ouvi-los. O turismo trouxe tanto barulho que é inacreditável.”

Maite Domingo Alegre, professora de inglês da Universitat Pompeu Fabra, mora no centro histórico da cidade, perto da catedral, e trabalha perto de Las Ramblas. Hoje, diz que a cidade mudou de tal forma que está irreconhecível.

“Sempre tivemos turismo, e turismo de massas, mas nos últimos 10 a 15 anos isso mudou drasticamente”, começa por dizer. “Já não é sazonal, é 365 dias por ano. E já há mais turistas do que habitantes.”

As ruas lotadas são uma coisa; os efeitos colaterais, segundo a professora, são piores.

“A maioria das lojas — mesmo minimercados, lojas de roupas, restaurantes, tudo o que esteja localizado no centro — é basicamente feita para turistas”, observa Maite. “Os preços subiram. O Airbnb basicamente expulsou muitos moradores locais. A maioria dos meus amigos fugiu do bairro porque não tem mais condições de morar lá.”

A pandemia intensificou o problema, conclui Maite, uma vez que atraiu trabalhadores remotos – os chamados nómadas digitais – de toda a Europa. “Eles não se misturam com os moradores locais. Não estão interessados na cultura catalã ou mesmo espanhola. Acham que é mais barato e têm boa comida e bebidas baratas, então a maioria dos bares e restaurantes também é pensada para eles.”

Em Veneza, a história é a mesma. O último vídeo do músico pop local Ornello mostra-o vestido de astronauta, a caminhar entre as multidões de verão. Na sua identidade real, Alessio Centenaro, sente-se igualmente deslocado na sua cidade natal.

No seu último videoclip, o músico Ornello aparece vestido de astronauta a caminhar pelas ruas movimentadas que se tornaram estranhas para ele. (Cortesia de Ornello)

“Sou ciclista e aos domingos pego na minha bicicleta na Piazzale Roma [terminal rodoviário de Veneza]. Saio e vou contra todos os turistas que chegam e sinto-me como um salmão a nadar contra a corrente. Às vezes, quando estás rodeado de turistas, com centenas à tua volta, sentes-te como se fosses tu o estrangeiro.”

Veneza sempre foi uma cidade turística, mas também já teve uma população residente considerável, lembra Alessio: “Existem 48 mil pessoas oficialmente, mas ninguém diz qual é a percentagem de idosos. Eu diria que talvez 70% tenham mais de 70 anos. Se eles viverem mais 15 anos, o que acontecerá depois?”

De “secreto” a sobrelotado

Nas últimas cinco décadas, Josephides viu destinos passarem de encantadores a sobrelotados. A trajetória, diz o operador turístico, é quase sempre a mesma.

Primeiro, uma operadora de turismo como a Sunvil identifica um destino pouco visitado que parece perfeito para os seus clientes — pessoas que procuram férias onde não estarão rodeadas por outros turistas. Adiciona esse destino aos seus catálogos, geralmente incluindo um voo charter semanal para levar os clientes até lá nos primeiros tempos. As primeiras temporadas são um período tranquilo, com relativamente poucos visitantes. Os turistas desfrutam da paz e do silêncio; os residentes desfrutam do dinheiro que eles injetam na economia local.

Mas depois a notícia espalha-se. Uma companhia aérea de baixo custo — porque são as companhias aéreas de baixo custo, e não as tradicionais, que investem em lugares menos conhecidos — começa a operar para o destino. No ano seguinte, as suas concorrentes seguem o exemplo, ansiosas por não perder a oportunidade. E se a Jet2 sabe algo que nós não sabemos?

De repente, há um excesso de aviões a voar para o destino e, para os encher, as companhias aéreas reduzem as tarifas, o que significa que o turismo económico se transforma num “turismo de massas”, descreve Josephides. O alojamento tem dificuldade em acompanhar o ritmo do número crescente de visitantes, levando os locais a investir em arrendamentos de curta duração.

Em pouco tempo, esse destino “secreto” fica lotado — não apenas pelos pioneiros mais abastados, mas também pelo turismo de massas, que voa em companhias aéreas low cost, fica hospedado num Airbnb e, em geral, gasta menos na região. Assim, a primeira onda segue para um novo lugar, e o ciclo recomeça.

Noel Josephides nomeia a ilha grega de Samos como um dos próximos destinos a passar por esse ciclo. Este ano, há um voo direto semanal do Reino Unido. “No próximo ano, a TUI [uma agência de viagens alemã] terá voos às quintas-feiras e domingos. A Jet2 disponibilizou quatro voos: dois de Manchester, um de Birmingham e um de Stansted. Então, é só esperar para ver a Ryanair e a easyJet a chegarem.” Os participantes do turismo de massas “movem-se como um aspirador”, compara Noel. “A natureza da ilha vai mudar, mas os governos locais não vão compreender o que vai acontecer até ser tarde demais.”

Mesmo os destinos turísticos já estabelecidos podem ser vítimas da sua própria popularidade. Os aeroportos nas ilhas gregas de Corfu e Creta estão inundados de voos, observa Noel: “O turismo de massas não vai para destinos desconhecidos, então temos uma série de voos baratos a alimentar empresas como a Airbnb. A população local está certa — está fora de controlo.»

Em comunicado, um porta-voz da Airbnb responde: “A Airbnb oferece uma maneira diferente de viajar, que distribui melhor os hóspedes e os benefícios para mais comunidades. O facto é que o excesso de turismo está piorar nas cidades onde a Airbnb é fortemente restringida: em Amesterdão ou Barcelona, a introdução de restrições rigorosas aos alugueres de curta duração coincidiu com um aumento acentuado nas diárias de hóspedes impulsionado pelos hotéis e um aumento nos preços de acomodações para viajantes. As cidades que querem ter um impacto significativo no excesso de turismo devem abraçar o turismo que apoia as famílias e as comunidades.» A empresa acrescenta que 59% das estadias vendidas na UE na Airbnb em 2024 foram em destinos fora das cidades, enquanto, segundo um relatório interno publicado em junho, a maioria dos turistas ainda escolhe hotéis. A VRBO, outro grande fornecedor de alugueres de curta duração, não respondeu a um pedido de comentário.

O turismo de Palma está a tomar medidas para recentrar a indústria nos residentes, e não nos visitantes. (Sergi Reboredo/Getty Images)

Uma ofensiva contra o excesso de turismo

Pedro Homar conhece bem essa pressão. Como diretor de turismo da Visit Palma, está dividido entre os visitantes que se comportam mal na cidade espanhola e os residentes que exigem medidas.

“Temos de garantir que o turismo é uma indústria sustentável, não apenas do ponto de vista ambiental, mas também do ponto de vista social e económico”, defende. “A nossa economia depende do turismo, por isso, ou garantimos a sustentabilidade física ou não teremos futuro.”

Desde a pandemia, Palma deixou de se promover abertamente. Em vez disso, realiza “campanhas de imagem” para moldar as perceções — chegando mesmo a distribuir anúncios para denunciar certos comportamentos em determinados resorts.

Em 2022, a cidade em Maiorca, Espanha, limitou a chegada de navios de cruzeiro a três por dia, embora o porto tenha capacidade para seis. Barcelona seguiu o exemplo, anunciando em julho que vai encerrar dois dos seus sete terminais de cruzeiros a partir de 2026. Palma proibiu apartamentos de aluguer de curta duração e Airbnbs em edifícios residenciais no centro da cidade e estabeleceu um limite de 12 mil camas de hotel: ou seja, para que um novo hotel abra, outro deve fechar.

Palma também criou um fundo de 50 milhões de euros para comprar e retirar de circulação hotéis datados — normalmente, propriedades mais baratas que tendem a atrair turistas com orçamentos mais modestos. “É uma forma de retirar do mercado todos esses hotéis obsoletos e antigos que já não são competitivos e não são o tipo de produto que queremos para o destino”, explica Pedro Homar.

Vsitar a Fontana di Trevi, em Roma, tornou-se um desafio. (Jakub Porzycki/NurPhoto/Getty Images)

“Não precisamos de vocês”

A abordagem de Palma levanta uma questão: quem tem o “direito” de viajar?

Alguns destinos há muito que aplicaram custos elevados para dissuadir o turismo de massas. O Butão, na Ásia, cobra uma taxa de cerca de 85 euros para o “fundo de desenvolvimento sustentável”. Uma licença para fazer trekking com gorilas em Ruanda custa cerca de 1.290 euros por pessoa. Até mesmo a taxa de 10 euros aplicada aos turistas que visitam Veneza tem sido alvo de críticas dos moradores locais, que acusam a cidade de vender-se aos ricos.

Pedro Homar defende que os destinos devem ter o direito de escolher quem os visita, comparando essa abordagem com a seleção de quem queremos convidar para jantar.

“Acredito realmente que, como destinos turísticos já estabelecidos há algum tempo, temos o direito de escolher os turistas que queremos e os que não queremos», argumenta. “Queremos turistas que respeitem a nossa cultura, o nosso modo de vida, as nossas tradições.”

“Se está a pensar em vir sem uma perspetiva respeitosa, dizemos, respeitosamente, que não precisamos de si.”

Noel Josephides é mais direto. “Eles já não querem a ralé. Parece horrível dizer isso, e todos têm direito a férias, mas os números continuam a crescer. A situação está fora de controlo. Compreendo a democratização, mas cabe ao destino decidir se quer clientes sem dinheiro”, defende, acrescentando: “Eu também gostava de conduzir um Ferrari, mas não tenho dinheiro para isso.”

Por enquanto, diz Noel, a maioria dos destinos europeus parece focada em limitar o número de turistas, em vez de excluir totalmente os que viajam com orçamento limitado.

Reconquistar os moradores locais

Restaurar a boa vontade dos moradores é tão importante como lidar com as multidões.

“Uma cidade onde os residentes não estão satisfeitos é uma cidade que não funciona”, afirma Ruben Santopietro, CEO da Visit Italy, uma empresa de marketing para vários destinos em todo o país. “Perde completamente a sua identidade. Os residentes sentem-se excluídos e os bairros tornam-se turísticos.”

Nascido em Nápoles, palco de protestos contra a falta de habitação e o aumento do número de alugueres de curta duração em março, Ruben Santopietro assistiu ao aumento da popularidade da sua cidade natal — e dos preços das habitações — ao longo da última década.

Ruben alerta que, se o turismo continuar a crescer fora de controlo, “em cinco anos, 50% das città d’arte [cidades italianas de cultura] tornar-se-ão inacessíveis”. Roma, Florença e Nápoles já estão “sufocadas pelo turismo” quase a ponto de não retorno, avisa.

Segundo Ruben, a verdade é que os turistas querem os moradores locais por perto. “Veneza pertence aos venezianos. Se os moradores locais não estiverem lá, eles não vão viajar para lá. Colocar os residentes no centro dos modelos de turismo é a única maneira de evitar que as nossas cidades de se transformem em museus a céu aberto.”

Homar concorda, repetindo a mesma frase — “colocar os residentes no centro da estratégia turística” — ao falar sobre o novo plano quinquenal de Palma, adotado em 2023. Alguns hotéis adquiridos pela cidade serão substituídos por espaços verdes ou convertidos em habitações. Em novembro, Palma lançará atividades culturais gratuitas para os moradores locais — recitais de órgão, dias infantis no antigo atelier do artista Joan Miró, concertos teatrais organizados por estações de rádio nacionais espanholas, passeios arquitetónicos guiados pela cidade — para “promover o sentimento de pertença e o orgulho de ser cidadão”.

“Todas estas iniciativas serão realizadas em espaços que, por alguma razão, os residentes acreditam serem apenas para turistas”, explica. “Estamos a perceber que o sentimento de pertença que os residentes costumavam ter em relação a Palma está a desaparecer gradualmente, e precisamos de mudar essa dinâmica.”

O flagelo das redes sociais

Redistribuir os turistas também pode ajudar. O problema em Itália, segundo Ruben Santopietro, não é que o país não consiga lidar com os números — é que todos vão aos mesmos sítios.

Neste verão, a agência de Ruben lançou uma campanha, chamada “Os 99% da Itália”, para incentivar os turistas a visitar destinos menos conhecidos, de Génova a Tropea (alguns dos quais eram seus clientes, mas não todos). “Utilizamos as redes sociais, pois foram elas que criaram estes desequilíbrios”, explica, acrescentando que espera resultados tangíveis a longo prazo, já que as campanhas de marketing regionais demoram mais tempo a surtir efeito.

Ruben Santopietro diz que, mesmo nos destinos mais movimentados, é possível tomar medidas para dispersar os visitantes. Para isso, sugere incentivos — por exemplo, bilhetes com desconto para o Coliseu de Roma para aqueles que já visitaram a antiga cidade costeira de Ostia Antica.

Os moradores de Nápoles protestaram contra a crise imobiliária em março, apontando os alugueres de curta duração como uma das causas. (Salvatore Laport/Getty Images)

A recuperação é possível, mas leva tempo

A curto prazo, é provável que os protestos se espalhem, antevê Estrella Diaz Sanchez, professora associada de marketing da Universidade de Castilla-La Mancha, em Espanha.

“Alguns moradores locais estão frustrados com o número de turistas que recebem, mas acho que o principal fator é o aumento vertiginoso das rendas, impulsionado pelos alugueres de férias de curta duração, que estão a expulsar os moradores locais do mercado imobiliário”, explica a professora. “A solução não é rejeitar o turismo, mas torná-lo mais inclusivo e respeitoso.”

Até mesmo Noel Josephides, o pessimista da indústria do turismo, acredita que a recuperação é possível. E dá como exemplo Estoril, na zona costeira de Lisboa, que na década de 1970 era um destino de turismo de massas. As autoridades decidiram torná-lo um destino de luxo e tiveram sucesso.

“É possível recuperar, mas leva tempo”, avisa. “É muito mais fácil para um destino controlar o seu crescimento do que recuperá-lo mais tarde.”