“A atmosfera de sala de aula era confusa”, descreve. “Lembro-me de expressarmos como turma muitas vezes o desconforto que sentíamos, mas ainda assim, ele continuava a ser sempre o primeiro da lista a prontificar-se para cobrir faltas de outros formadores… Ainda assim, ninguém gostava das aulas dele. Sempre que nos vinham comunicar uma mudança de horário já sabíamos que era garantido mais uma tarde extra com ele e apesar das tentativas de expressar o nosso ponto de vista e desconforto com as aulas de movimento, acho que o assunto nunca foi visto como algo além de ‘a turma do primeiro ano está a implicar com o professor de dança outra vez’”, diz, frustrada.

Um dos episódios “mais marcantes”, recorda Rita, terá acontecido durante o segundo período do mesmo ano letivo, quando o professor resolveu introduzir uma nova coreografia. “Era uma coreografia com toalhas, uma dança específica em que ele tinha participado com efeitos de luz e splashes de água. Até aí tudo bem, ninguém achou estranho, começamos então a aprender a coreografia como fazíamos em todas as aulas. Sabíamos que durante esta performance os bailarinos participantes estavam completamente despidos, foi uma das primeiras coisas que o professor mencionou”, conta. “Ainda assim, tudo bem, no meio adulto artístico este tipo de performance consegue ser apreciado com respeito e até à data estávamos apenas a aprender a dança utilizando uma pequena toalha de adereço e as nossas roupas normais de treino.” “Até que certo dia o professor chega à sala de aula com o seu computador pessoal com a finalidade de demonstrar o efeito dos tais splashes de água na coreografia. A turma logo de início recusou a proposta pois sabíamos que o professor fazia parte da dança e que todos os bailarinos estavam completamente despidos. Já na altura do ocorrido achámos que seria estranho e pouco saudável, não só para a dinâmica de sala de aula, mas também para a relação professor-aluno. O professor insistiu diversas vezes e nós dissemos que não queríamos ver o vídeo. Ele começou a aula, a marcar a coreografia como de costume, mas logo voltou a tocar no assunto do vídeo. O professor insistiu, alegando que com as luzes não dava para ver nada, o que se comprovou ser mentira, dava perfeitamente para ver tudo explicitamente, e para que não houvesse dúvidas ainda apontou para mostrar qual dos bailarinos era ele! Lembro-me que a grande maioria da turma, na época composta maioritariamente de menores de idade, ficou bastante desconfortável com a situação.”

“Rita” diz nunca ter sido abordada nas redes sociais enquanto era aluna na escola. “Na época era uma pessoa mais privada do que sou hoje em dia, nem sequer seguia todos os meus colegas de classe nas redes sociais”, lembra. Mas este ano, sem motivo aparente, recebeu uma mensagem no Instagram. “Era uma resposta a um story a dizer ‘super linda’ com uns emojis de uns corações apaixonados. Rapidamente reconheci o nome e a minha primeira reação foi pensar ‘este gajo passou-se’. Ainda pensei que ele não me tivesse reconhecido ou que fosse engano. Fiquei um pouco confusa, mas não seria possível não saber que sou uma ex-aluna da escola… Temos demasiados seguidores em comum. Este senhor nunca me seguiu nas redes sociais, mas sem sombra de dúvidas abriu os meus stories com plena certeza de que eu seria uma antiga aluna. Apesar de atualmente já ser maior de idade, algo nesta mensagem deixou-me completamente desconfortável. Pessoalmente, achei estranho ter alguém que me deu aulas e que me conheceu com 15 anos tão casualmente, slide into my DMs, como se simplesmente tivesse dado um trambolhão no perfil de uma antiga colega de faculdade com uma idade aproximada.”

Rita fotografou a tela do telemóvel. “Publiquei o print no meu close friends como forma de compartilhar com alguns amigos muito chegados esta bizarrice. Foi aí que uma amiga me contactou e vi que a situação era reincidente com este cidadão. A partir desse momento bloqueei-o automaticamente.”

A “reincidência” é atestada pelas dezenas de testemunhos que chegaram à página de Instagram @nãotenhasmedo. “Todos os dias recebo prints e testemunhos diferentes”, afirma ao Observador a responsável pela conta de Instagram que começou a partilhar relatos de jovens que dizem ter recebido mensagens constantes por parte do mesmo professor. “São mulheres, geralmente antigas alunas, alunas na época”, descreve. Todas escolhem o anonimato, por receio de represálias.

Grande parte dos testemunhos divulgados nas redes sociais são de alunas e ex-alunas da Academia de Artes do Espetáculo (ACE) de Famalicão. Após as partilhas por parte de personalidades digitais com dezenas de milhares de seguidores, a instituição de ensino reagiu com um comunicado nas redes sociais, esclarecendo que “por decisão da direção, o mesmo [professor] cessou o seu vínculo com a escola em abril de 2025”. A mesma publicação refere que na ACE “estão implementados vários mecanismos de despiste e prevenção de situações de abuso, assédio e discriminação, tais como a Comissão de Ética e o Canal de Denúncia”. No mesmo comunicado, em que refere o nome do professor, a ACE diz que assume “de forma inequívoca, o respeito pelas pessoas da sua comunidade escolar, agindo de forma clara e decisiva perante qualquer informação ou denúncia”. A conta de Instagram da escola desativou os comentários em todas as publicações.

O professor era “um dos rostos da escola”, como descreve a diretora pedagógica e artística da instituição, Helena Machado, numa publicação no seu Facebook pessoal, em 2022, descrevendo o mesmo professor como “intenso, generoso e criativo”. “Trabalha comigo há 12 anos”, escreveu na legenda de uma fotografia de ambos.

Contactada pelo Observador, a ACE Famalicão não esclarece o motivo da cessão do vínculo com o dito professor, mas o Observador sabe que os professores da instituição foram informados em abril, aquando do afastamento, de que “tinha havido um contacto informático com uma aluna” e que foi isso que ditou o despedimento. A comunidade docente terá sido “apanhada de surpresa”.

“É um caso falado há anos naquela escola. Toda a gente sabe como é que ele é, que ele lança olhares muito desconfortáveis. Isto é um caso conhecido na ACE Famalicão”, acusa “Sofia” (nome fictício). “A escola podia ter agido muito mais cedo do que agiu. Ninguém nos ouviu”.

A ACE Famalicão não respondeu a nenhuma das questões colocadas por este jornal, nomeadamente se receberam queixas, ao longo dos anos, relativas ao mesmo docente, ou como funciona a Comissão de Ética e o Canal de Denúncia referidos na nota publicada. O Observador contactou o Ministério da Educação sobre o conhecimento de eventuais casos de assédio a alunos da ACE Famalicão. Em resposta, o gabinete do ministério tutelado por Fernando Alexandre assegura que “segundo a Inspeção-Geral de Educação e Ciência (IGEC) não deu entrada nenhuma queixa ou denúncia sobre a ACE — Academia Contemporânea do Espetáculo, polo de Famalicão”.

Sofia entrou na ACE em 2020. Tinha 14 anos. Foi uma das alunas que durante as provas de aptidão conseguiu via rápida para a entrada na escola de ensino artístico. “As provas da ACE implicam prova de interpretação, entrevista, prova de inglês, de português e de movimento. São atribuídas várias notas. E alguém pode pôr-nos uma estrela. Atribuir-nos uma estrela significa que já entrámos na escola, não precisamos do resto das notas.”

A jovem, que “até já tinha notas suficientes para entrar”, garantiu entrada direta na ACE Famalicão com uma estrela atribuída pelo professor agora acusado por várias alunas. Mas a estrela, esse passaporte que tanta felicidade lhe trouxe, haveria de jogar contra a própria. “Ele usava uma técnica de manipulação que era o facto de me ter dado uma estrela. E a verdade é que eu sentia-me muito mal por impor limites”, recorda. “Acho que não quis ver o grave da situação”. Relata olhares insistentes e comportamentos que reconhece como “estranhos”. “A minha turma comentava que ele tinha comportamentos estranhos. Falava connosco só de boxers, vestia-se na sala. Mas o que nos era dito era que isso era normal no mundo artístico.”

O professor seguia-a nas redes sociais, mas quando Sofia saiu da escola as mensagens “começaram a ser de outro teor”. “A dizer que ele me queria ver e se queria declarar a mim, coisas desse género. O que me fazia confusão é que, mesmo não tendo resposta, ele continuava a insistir nas mensagens”, descreve. “Eu não lhe respondia e ele insistia.” O Observador teve acesso às mensagens. “Amo-te”, “A maior gata de Famalicão”, “Queres namorar comigo?”, “Matas-me”, foram algumas das mensagens recebidas. Outras eram conteúdos como um vídeo onde se diz: “Me empresta um beijo que eu te pago depois”.

Sofia diz que nunca ponderou reportar à escola e que desconhecia, como todas as alunas e ex-alunas que falaram com este jornal, qualquer canal de denúncias. “Achei que se tivesse alguma ação contra ele poderia piorar a minha carreira artística, mas acabei por ter só de o bloquear mesmo, comecei a ficar assustada”, conta. “Tenho medo de ser processada.”