Primeiro, o «mundo rural» é uma expressão abjecta, como quem remete para uma realidade longínqua, e que se torna mais absurda num país com pouco mais de 200 quilómetros de largura. Mas este fabuloso mundo, de onde saiu um povo inteiro, desaguando em Lisboa, tornou-se uma fantasia dos próprios herdeiros do êxodo rural. Descobriram o campo, os infelizes. Não o campo real, claro — que é sujo, áspero, fedorento e nada charmoso — mas o campo em versão lifestyle, minimalista e aromatizada, onde o mato é sempre decorativo, em raminhos de trigo e rosmaninho, onde o burro é tão fotogénico como o asno que o retrata, e as galinhas são cuidadas como minorias e pelo nome próprio. Em suma, não há pachorra.

O «mundo rural» é uma espécie de «sítio lá longe onde vivem velhos, pobres e atrasados mentais» que se funde com a visão do «campo como local de escapadinha predilecta da neo-classe da ciclovia»: gente que tem mais consciência ecológica do que calos nas mãos, que se emociona com oliveiras, mas não sabe podá-las, que fala da ruralidade com a excessiva confiança de quem já passou um fim de semana num turismo rural, com pão de fermentação lenta e ioga no olival, não sabe bem como conviver com a coisa.

É uma avalanche de Floribelas, seres humanos que acreditam que a terra se trabalha com afecto, as vacas produzem leite por generosidade e as porcas se chamam Matilde. Na imaginação desses missionários urbanóides, a vida fora do alcatrão é uma espécie de spa ético, um lugar onde se cultiva a consciência moral entre uma praga de javalis, uns queridos!, e um brunch vegan; um lugar onde a única coisa que arde são incensos, e onde os únicos tiros são de fotografia, com filtro sépia.

No seu olhar bovinamente romântico, o interior não é uma realidade — é um parque temático de nostalgia da pobreza, uma versão pitoresca ideal para fotografar. A pobreza que convém: aquela que os faz sentir superiores, mas não os incomoda. Falam dos “velhos saberes” com ternura paternalista, mas voltam de lá ao domingo à tarde com urticária emocional, desejosos de regressar ao conforto higiénico do seu apartamento, onde encerram gatos e cães.

Eventualmente, acreditam que as árvores sentem, os animais pensam, e os homens deviam todos ser suspensos em caso de excesso de masculinidade agrária. E se por acaso encontrarem um agricultor que ainda tem espingarda, exigem que se lhe retire o direito a existir. Porque essa gente, «do campo a sério», não entende nada de campo.

O «mundo rural», no entanto, não precisa de quem o visite. Nem precisa de afectos de políticos ou da simpatia do telejornal, que o descobre sempre que há desgraça. O que não se aguenta são entendedores pós-modernos que acham que as oliveiras não ardem, ou turistas de consciência, peregrinos de bicicleta elétrica e meias de algodão orgânico, que fazem do campo um espetáculo de virtude, sem sujarem as mãos, nem as ideias. O «mundo rural», a nem 200 quilómetros do Campo Grande, precisa de gente que lá viva, que lá invista, que lá trabalhe, e que a deixe viver, investir, trabalhar, sem paternalismos, cantigas de Floribela, abraços a troncos, e o Estado, todo influenciado por urbanitas ou incompetentes, a atrapalhar.

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