O Cafè au Lait tem nome de bistrô francês, mas a realidade no caso é menos glamourosa. É a única pastelaria de Porto Brandão, em Almada, uma modesta portinha sem art-decòs, à sombra de uma igreja e a poucos passos do Tejo, naquela tarde quente de setembro vazia, salvo o cão que ressona na porta e a dona com os cotovelos apoiados no balcão de vidro.
A dona que acompanha atenta a entrevista que se segue com a jornalista e escritora Ana da Cunha, que no seu último livro, Sodade (Editora Sibila), traz ao mesmo tempo tão perto e tão distante Porto Brandão para o mapa literário português. Uma obra que já chegou à livrarias, inspirada numa série crossmedia (em texto, vídeo e podcast) que a autora publicou na Mensagem e que foi distinguida nos Prémios de Ciberjornalismo OBCIBER em 2023:
A Mensagem estreia a primeira série crossmedia (em texto, vídeo e podcast) sobre um território parado no tempo há 50 anos, a morada onde quase ninguém escolhe parar e onde finalmente se anunciam mudanças: Porto Brandão, em Almada, terra de pescadores e com papel histórico no país.
Porto Brandão, uma espécie de enclave na Margem Sul de Lisboa, onde as ruínas de um antigo asilo se erguem imponentes e severas como um farol.
Lá pelas tantas, a dona do Cafè au Lait, visivelmente interessada na entrevista, começa a interpelar Ana da Cunha sobre as personagens do livro, nomes que surgem e que a escritora reconhece sem embaraços, recebendo no final a aprovação da inusitada prova oral com um menear positivo de cabeça, o atestado da pesquisa base para o romance ter sido bem feita.
Os cuidados com personagens e factos históricos são só um dos elementos que fazem de Sodade um livro fundamental no reencontro dos lisboetas com um passado recente que une as duas margens do rio, até então soterrado nas ruínas do tal antigo asilo, porém ainda vivo no cotidiano da dona do Cafè au Lait e dos seu clientes, os moradores que ainda resistem em viver em Porto Brandão.
Sodade é também a história da imigração recente da comunidade de Cabo Verde para Lisboa após o 25 de Abril, revisitada na voz do narrador, Zé, um dos antigos moradores do Asilo 28 de Maio, a imensa edificação igualmente personagem do livro que viveu várias vidas, primeiro como entreposto para os viajantes em quarentena, depois convento, orfanato e, por fim, de lar.
Ana da Cunha, jornalista e autora de Sodade, em Porto Brandão. Foto: Rita Ansone
Uma viagem na companhia atenta da jovem escritora portuense radicada em Lisboa, que fez da experiência jornalística a ferramenta para tecer uma ficção com as urdiduras dos factos reais que seduziu o júri do Prémio Literário Maria Amália Vaz de Carvalho, composto por nomes experientes, mas que nunca tinham ouvido falar da fascinante história do antigo asilo.
Aqui, Ana da Cunha deparou-se com personagens romanescos de carne e osso. Como o antigo morador do asilo que mencionava um amigo de juventude como se estivesse morto, até ser alertado pela autora de que o tal amigo estava vivo.
“Um edifício labiríntico que numa época foi ocupado por 600 pessoas por si só era um tema fascinante. Sodade surgiu disso, da fusão entre o que aconteceu e imaginei o que aconteceu com os moradores do lazareto”, conta Ana da Cunha.
“O escritor é um bocadinho ator e, como tenho experiência em teatro, não vi nenhum problema em pôr-me na pele do outro. Não acredito no conceito do lugar-de-fala, mas é claro que se fosse escrito por alguém que viveu no asilo, seria um outro livro. Essa é a minha versão”, explica Ana da Cunha, que antes dos papéis de jornalista e escritora andou pelas artes cénicas.
Uma versão que cumpre muito bem o papel de partir da realidade para através do romance falar do poder das amizades fraternas e da força dos laços que unem as pequenas comunidades diante de grandes desafios, como o de transformar um espaço físico concebido para encarcerar e segregar as pessoas num lar.
O livro será apresentado em Lisboa a 4 de setembro, às 18h30, na Casa do Comum, com a presença da autora e da editora, a também escritora Inês Pedrosa, numa conversa sobre a narrativa e a laboriosa construção do livro.
A morte que dá vida ao livro
Um lar para cerca de 600 moradores, a maioria cabo-verdianos vindos da antiga colónia após 25 de Abril, como o pequeno Zé, o pai e a mãe. Sodade começa com o narrador já adulto e que, confrontado com as últimas palavras maternas no leito de morte, “Fidj, que é feito do Carlitos?”, empreende uma epopeia no retorno à antiga casa, o Asilo 28 de Maio como a sua Ítaca.
Uma viagem pela dura existência numa vila improvisada no labiríntico lazareto construído em 1869, para servir a quarentena daqueles que chegavam de outros país, num tempo de febre amarela. Alguns dos antigos hóspedes foram homens ilustres como Bordalo Pinheiro e até o ex-imperador do Brasil, D. Pedro II.
O Lazareto ou Asilo 28 de Maio. Foto: Inês Leote
Quando os imigrantes cabo-verdianos começaram a ocupar o espaço, o Asilo 28 de Maio já tinha sido palco da morte de duas crianças, quando o edifício foi orfanato. A morte, portanto, outra personagem do livro, presente na saúde frágil inerente às habitações precárias e na heroína que se espalha como um surto entre os jovens moradores, prisioneiros de uma existência igualmente precária.
A morte dá vida ao livro ao convocar através do questionamento da moribunda mãe do narrador sobre o que é feito de Carlitos?, o amigo de infância de Zé, mas também o que é feito do antigo asilo. E Zé, esse Ulisses imigrante cabo-verdiano, parte nessa jornada em busca de Carlitos, a quem julgava morto, como julgava sepultado esse capítulo do seu passado.
Aprendendo a cada passo que os fantasmas são eternos.
“A reportagem traz luz a esse passado do asilo, mas também tenta questionar sobre o futuro daquele espaço. De certa forma, cumpriu a missão, mas acredito que o livro consegue tratar melhor esses dilemas ao me permitir tomar uma posição, o que no jornalismo não é possível”, comenta Ana da Cunha, sob o olhar perscrutador da dona do Cafè au Lait.
Esse tour de force realidade-ficção é um dos pontos altos de Sodade, ao provocar o leitor a perceber onde uma termina e começa a outra. “O júri pensava ser tudo ficção”, lembra Ana da Cunha.
“Na verdade, quem de certa forma romanceava a vida no lazareto eram os personagens da matéria, muitos com o nome Asilo 28 de Maio tatuados no corpo. Impressionou-me como uma lembrança podia ser ao mesmo tempo dura e terna, sentimentos que parecem só acontecer nos livros”, diz a escritora.
Ana da Cunha, jornalista e autora de Sodade, em Porto Brandão. Foto: Rita Ansone
Preservar a memória de Porto Brandão
Apesar do lado atriz estar acostumado a meter-se na pele do outros, apesar da despreocupação em relação aos rigores do lugar-de-fala, apesar de um romance não ser uma reportagem, Ana da Cunha ouviu a voz da jornalista sussurrar ao ouvido a necessidade de outras vozes de certa forma validarem a narrativa forjada na pele de um personagem e de uma realidade distante da autora.
Daí surgiu a curiosa amizade com Vera Duarte Pina, a leitora-zero de Sodade, poeta e juíza cabo-verdiana a quem Ana da Cunha recorreu para ajudá-la a perceber se as tintas da ficção não tinham carregado demais a realidade. Qual foi a surpresa dela ao perceber que a fantasiosa história do Asilo 28 de Maio também tinha escapado ao radar da escritora africana.
A autora e Vera Duarte Pina. Foto: Rita Ansone
“Quis ouvir a opinião de um cabo-verdiano, fiz uma pequena busca e achei que a Vera seria a pessoa ideal. Ela acolheu a proposta e acabou por ser um movimento interessante”, conta Ana da Cunha, que teve a oportunidade de conhecer sua leitora-zero pessoalmente numa visita a Cabo Verde, retribuída agora quando a escritora levou a leitora para conhecer Porto Brandão.
A ida a Cabo Verde e o contato com Vera ajudaram Ana da Cunha a construir outro personagem importante do livro, o crioulo cabo-verdiano que percorre os diálogos e acabou por dar título à obra.
“Em Cabo Verde tentei colmatar não apenas a forma de falar numa expressão ou outra que ouvi, mas um certo estilo de ser cabo-verdiano também presente em Sodade”, conta.
Assim, a autora de certa forma refez, embora de forma inversa, o caminho vivido pelo narrador Zé, que partiu de Cabo Verde para chegar a Porto Brandão, para só assim reconhecer-se como imigrante cabo-verdiano.
O percurso de Zé em busca do que é feito do amigo Carlitos é um mergulho profundo nesse contexto histórico do outro que aporta em Lisboa, no caso, no Porto Brandão, um sítio emblemático na georreferência lisboeta, ao pé da Ponte 25 de Abril na margem de Almada, outrora iluminado por uma atividade fabril que se foi e apagou o lugarejo do mapa.
A ficção encontra o jornalismo ao tratar do futuro de Porto Brandão e a promessa de um reacendimento puxado pela locomotiva do antigo asilo, recentemente comprado para se tornar em (mais) um hotel – proposta ainda em análise pela autarquia, mas que já tem servido para valorizar os preços dos vários imóveis de portas e janelas fechadas.
“A ideia do hotel não me assusta tanto quanto a possibilidade de o risco da perda de memória do local”, complementa.
Uma preservação da memória que, para já, está garantida nas linhas de Sodade, um livro que une Lisboa e Cabo Verde, literatura e jornalismo, passado e presente, um trabalho de fólego na alquimia de usar a dureza e a beleza da realidade como matéria-prima para contar uma história tão familiar aos que chegam, aos que aqui estão e aos que já partiram.
Como pode muito bem comprovar a atenta dona do Cafè au Lait.
Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 51 anos, há seis em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
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