Questionada pela imprensa, Lisa Cook não explicou porque é que, tanto numa casa como na outra, terá indicado que iria ser a sua moradia principal. A responsável disse, na semana passada, que estava a “reunir toda a informação correta para responder a quaisquer questões legítimas”. De resto, não confirmou (nem desmentiu) que tenha, de facto, comprado tanto uma casa a como outra dizendo (ao banco) que seriam a sua residência – os seus advogados responderam, apenas, que as acusações são “infundadas” e que esta é uma perseguição política.
Ouvida pelo The New York Times, Kathryn Judge, professora de regulação financeira na Universidade de Columbia, considera que as informações disponíveis não apresentam “dados suficientes para perceber o que realmente aconteceu” e para que se possa declarar que houve uma possível fraude.
Kathleen Engel, outra especialista na área, ligada à Universidade de Suffolk, concorda que os dados apresentados por William Pulte não chegam para provar uma irregularidade grave: “o crime de fraude contém vários elementos, incluindo a necessidade de se provar que houve intenção [de enganar o banco], e não há nada naquilo que foi alegado que possa, por si só, sustentar a uma acusação de fraude”.
A realidade é que Lisa Cook não foi, pelo menos para já, acusada de qualquer crime – e podem existir argumentos divergentes sobre a gravidade do que aconteceu. Apesar de ser uma prática que se acredita ser relativamente frequente, são raros os casos de pessoas condenadas nos EUA por fraude hipotecária – terão sido 38 em todo o país, em 2024, com penas médias de 14 meses (três em cada quatro casos implicaram, mesmo, o cumprimento de penas de prisão efetiva).
No entanto, mesmo admitindo que podem existir suspeitas legítimas, Trump poderia ter optado por lançar um inquérito cujas conclusões pudessem ser apreciadas pelo órgão que, afinal de contas, ouviu Lisa Cook e aprovou a sua nomeação, em 2022 – o Senado norte-americano. Mas o Presidente dos EUA não fez isso: saltou imediatamente para uma inédita (tentativa de) exoneração, o que reforça a leitura de que o Presidente está a utilizar este caso, denunciado por um aliado político, para colocar na Fed pessoas que lhe sejam leais, uma forma de atacar a independência do banco central.
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Apesar de ser o caso mais mediático, Lisa Cook não é única figura pública acusada pela administração Trump de fraude hipotecária, embora com contornos diferentes nos vários casos. As outras duas pessoas são o senador californiano Adam Schiff, democrata que protagonizou a primeira tentativa de impeachment de Trump no seu primeiro mandato, e a procuradora-geral de Nova Iorque Letitia James, também ligada ao partido democrata.
Por outro lado, a administração de Trump não tem dado atenção a outros casos de alegada fraude hipotecária, incluindo o do procurador-geral do Texas, Ken Paxton, republicano que é um conhecido aliado de Trump. Uma notícia da Associated Press (AP), no início deste ano, revelou que os créditos à habitação de três casas assinadas por Paxton e pela mulher, Angela, continham declarações incorretas a indicar que cada uma era a sua residência principal — o que terá permitido ao casal, agora separado, obter taxas de juro mais baixas.
No caso de Lisa Cook, além do maior mediatismo, trata-se de um processo com implicações potencialmente mais importantes já que envolve a Reserva Federal dos EUA. Ao contrário dos outros casos, o Presidente do EUA partiu de imediato para o que sabia que, além de inédito, iria ser muito polémico: escrever uma carta de exoneração visando uma figura-chave da política monetária e da supervisão financeira norte-americana.
Como são nomeados os membros da Fed e quanto duram os seus mandatos?
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A Reserva Federal, o banco central norte-americano, tem uma cúpula que é composta por um Conselho de Governadores, onde estão sete pessoas nomeadas pelo Presidente dos EUA. Esses são, de certa forma, os sete membros permanentes do banco central – mas juntam-se a eles, nomeadamente no comité específico que decide sobre taxas de juro, os 12 presidentes das 12 “divisões” regionais da Reserva Federal, que cobrem todo o território, ainda que só votem cinco destes elementos.
Cada governador do Conselho tem um mandato fixo de 14 anos, sendo que o modelo prevê que os mandatos sejam escalonados de forma a que haja um mandato de alguém a expirar a cada dois anos. A ideia é promover que exista uma continuidade mas, ao mesmo tempo, uma renovação gradual da Fed – sempre com independência face aos ciclos políticos.
Está previsto que os governadores possam renunciar aos seus mandatos – como aconteceu com Janet Yellen, que passou para a administração Biden, levando à nomeação de Lisa Cook, que foi “completar” o mandato de Yellen antes de ser, depois, reconfirmada para um novo mandato (completo).
Paralelamente à nomeação para cargos de governador, também cabe ao Presidente dos EUA escolher dois governadores para, durante quatro anos (renováveis), desempenharem as funções de presidente e vice-presidente da Fed. Também essas escolhas devem ser confirmadas pelo Senado norte-americano.
Por exemplo, o atual presidente, Jay Powell, foi escolhido por Trump em 2018 para cumprir um mandato de quatro anos (que, depois, foi revalidado por mais quatro anos por Joe Biden, até 2026). Porém, o mandato “original” de Jay Powell, como membro do conselho de governadores, só expira em 2028, 14 anos depois de ter começado.
“Trump quer vergar a política monetária norte-americana à sua vontade e aumentar o seu controlo sobre uma das principais manivelas do setor financeiro mundial – afrontando algo que é praticamente consensual, que é achar que [os bancos centrais] não devem estar nas mãos dos políticos”, escreveu a agência Bloomberg num artigo editorial publicado na quinta-feira.
“A governadora Cook foi empurrada para um papel que não procurava e que, sem dúvida, preferiria não protagonizar — sendo subitamente lançada numa luta maior do que a vida para defender uma instituição que ajudou a promover o sucesso económico e financeiro dos EUA no período pós-Segunda Guerra Mundial”, afirmou David Wilcox, membro sénior do Peterson Institute for International Economics e antigo líder da divisão de investigação e estatística da Fed, citado pelo The New York Times.
Dada a importância do caso, é previsível que o trabalho judicial avance rapidamente – o que ficou comprovado pelo facto de o processo ter sido instaurado na quinta-feira e, logo no dia seguinte, Lisa Cook já estava a ser ouvida por um juiz. Mas, como salienta Frantisek Taborsky, analista do banco holandês ING, “há muita incerteza sobre o calendário previsível para que possa haver uma deliberação pelo tribunal e sobre se Cook vai continuar no cargo”.
Para já, os mercados financeiros não parecem estar muito preocupados com este “verdadeiro assalto à independência da Reserva Federal“, salientou William Dudley, antigo membro da Reserva Federal (presidente da Fed de Nova Iorque), em entrevista à Bloomberg TV. “Estou um pouco surpreendido que os mercados estejam tão relaxados perante esta questão“, afirmou o responsável, contrastando com o impacto dos anúncios de tarifas pesadas que Trump fez no início de abril e que levou a fortes correções bolsistas.
Trump tem autoridade para demitir um membro da Fed? Isso já aconteceu na História?
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O tema é complexo porque nunca um Presidente norte-americano tentou substituir um membro da Reserva Federal. O mais próximo disso que alguma vez aconteceu foi quando o Presidente Franklin D. Roosevelt exonerou, em 1935, o então presidente da Federal Trade Commission (FTC) – que, não sendo um organismo exatamente idêntico à Reserva Federal, também é uma autoridade pública independente (cujo líder também é, apesar dessa independência, nomeado pela Casa Branca).
O Supremo Tribunal norte-americano viria a deliberar, nesse caso, que o Presidente não tinha legitimidade para fazer aquela exoneração. O visado, William Humphrey, morreu enquanto o processo decorria no tribunal, mas o caso acabou, mesmo, por ter uma decisão – e essa deliberação é frequentemente apontada como um precedente válido no caso da Reserva Federal.
Existem outros processos em curso nos tribunais, incluindo no Supremo Tribunal, que também são relativos a despedimentos feitos por Trump (no primeiro mandato) e que, uma vez concluídos, podem ter alguma aplicação parcial na Reserva Federal. Nos últimos meses, falou-se muito destas questões no âmbito da pressão de Trump sobre Jay Powell mas, agora, a relevância aumenta devido ao caso de Lisa Cook.
Mas Frantisek Taborsky, analista do ING especializado em mercado cambial, salienta que, “embora os investidores se estejam a mostrar cautelosos em especular sobre esta polémica em torno da Fed, preferindo dar mais atenção aos desenvolvimentos conjunturais e orientados pelos dados económicos, os riscos de pressão descendente sobre o dólar aumentaram de forma evidente“.
Ao mesmo tempo, está perto de chegar à cúpula do banco central Stephen Miran, um dos economistas mais próximos de Trump que, para já, vai concluir o mandato de uma governadora que decidiu sair poucos meses antes do fim do mandato (Adriana Kugler). Caso venha a ser, depois, reconduzido, Miran é uma forte possibilidade para a presidência da Fed, sucedendo a Jay Powell.
Powell, mais ligado ao partido republicano, foi nomeado para o conselho de governadores em 2012 por um Presidente democrata: Barack Obama. Mas foi Trump que o escolheu como presidente (reconduzido, depois, por Biden). O seu mandato como membro do conselho só termina a 31 de janeiro de 2028. Os outros mandatos em curso no board são os seguintes:
- Philip Jefferson, um democrata, entrou no tempo de Joe Biden (maio de 2022) e tornou-se vice-governador em setembro de 2023;
- Michelle Bowman, uma republicana, entrou em 2018 no conselho pela mão de Trump;
- Christopher Waller, também republicano, foi nomeado para o board no final de 2020 – já Trump tinha perdido as eleições mas ainda não tinha cedido a Casa Branca a Joe Biden;
- Michael Barr, um democrata, foi nomeado por Biden em julho de 2022;
- Lisa Cook, também democrata, entrou no mesmo ano, um pouco antes, em maio, também pela mão de Biden;
- O sétimo lugar está vago, era de Adriana Kugler, uma democrata cujo mandato terminava no início de 2026 mas que decidiu sair, sem dar grandes explicações, a cinco meses do fim do mandato. O seu mandato deverá ser concluído pelo republicano Stephen Miran.
Isto significa que, neste momento, não contando com Powell – cujas alianças são mais difíceis de avaliar neste momento, depois de todas as polémicas recentes – há três democratas no conselho e três republicanos (a contar, já, com a entrada de Stephen Miran). Daí que o lugar de Lisa Cook possa ser decisivo para os equilíbrios futuros na Fed.
“O risco de uma mudança estrutural para uma orientação mais dovish (mais defensora de juros baixos) prolongada na Fed poderá tornar-se consideravelmente mais elevado”, resume Frantisek Taborsky, do ING. O dólar já tem desvalorizado de forma significativa nos últimos meses, mais de 10% em relação às outras principais divisas, e especula-se que um dólar baixo é um objetivo não-declarado da administração Trump, já que isso contribuiria para aumentar a competitividade das exportadoras norte-americanas nos mercados internacionais.
Mas as implicações vão muito além das cambiais. “O que está em jogo não podia ser mais importante, para a Reserva Federal e para o nosso sistema de separação de poderes, e também para a economia norte-americana”, afirmou Amit Agarwal ao The New York Times. Este advogado da Protect Democracy, organização que processou Trump pelas suas ações contra outros funcionários de outras agências independentes, avisa que se Trump conseguir, mesmo, demitir Cook, “a Reserva Federal deixará de ter qualquer isolamento face ao controlo presidencial, o que significa a morte da Reserva Federal como organismo independente”.
Citado pela Bloomberg, Eswar Prasad, professor de Economia na Universidade de Cornell, concorda que “Trump está a minar gravemente a credibilidade da Fed como uma instituição protegida de pressões políticas”. Caso consiga tornar a Fed um organismo mais permeável à influência da Casa Branca, isso terá, avisa o especialista, “ramificações adversas para a condução eficaz da política monetária, para a confiança mundial nos mercados financeiros dos EUA e para o domínio global do dólar”.