O desaparecimento de uma figura carismática

Musa al Sadr, nascido no Irão e radicado no Líbano, ganhou prestígio como defensor dos muçulmanos xiitas marginalizados e como promotor do diálogo inter-religioso. O carisma e influência política valeram-lhe o título honorífico de imã, algo raro em vida, pois os imãs na doutrina xiita, ao contrário da doutrina sunita, são apenas os herdeiros espirituais e corporais diretos do profeta Maomé, escolhidos por Deus. Quando não há imãs, esse cargo é direcionado a uma pessoa com especial conhecimento da religião.

Dentro da teologia do xiismo existem três ramos principais, sendo o mais numeroso o dos xiitas duodecimanos, também conhecidos como “xiitas dos doze imãs”. Estes seguem a linhagem de doze imãs sucessivos considerados herdeiros espirituais e corporais diretos do profeta Maomé. O último deles, Muhammad al-Mahdi, conhecido como “O Guia” acredita-se ainda estar vivo apesar de escondido desde 874, Alguns dos xiitas iranianos acreditam que o ayatollah Khomeini, o líder da revolução islâmica no Irão em 1979, teria recebido inspiração do último imã.

Só depois da revolução islâmica de 1979, o ayatollah Khomeini defendia que os clérigos tinham de estar no poder para cumprirem a sua função de implementar o Islão como Deus pretendia, através do mandato dos imãs xiitas, esta mudança foi controversa até entre os xiitas.

Os familiares do imã Musa Sadr, filósofo iraniano e líder religioso xiita, incluindo a sua irmã Rabab Sadr, reuniram-se, em 2019, com o Papa Francisco na Cidade do Vaticano, apelando ao acompanhamento do caso do desaparecimento do imã Musa al-Sadr.

Durante a reunião, que se realizou por ocasião do aniversário do dia em que o Musa Sadr pregou aos cristãos na Catedral Capuchinha durante a Quaresma, Rabab Sadr entregou uma carta ao líder da Igreja Católica Romana e pediu-lhe que investigasse o caso do desaparecimento do imã Musa Sadr, informou a IRNA.

Ficou conhecido na história por ter sido o primeiro líder muçulmano a discursar dentro de uma igreja católica e quebrou paradigmas ao sentar-se debaixo do crucifixo para proferir o discurso.

Em agosto de 1978, viajou para a Líbia a convite do então líder Muhammad Kadhafi, na esperança de mediar tensões envolvendo a guerra civil libanesa e os combatentes palestinianos. Foi visto pela última vez a 31 de agosto, quando saiu de um hotel em Trípoli num carro oficial. Nunca mais regressou. As autoridades da Líbia alegaram que teria viajado para Roma, mas essa versão foi desmentida.

Uma fotografia misteriosa

Com a queda de Kadhafi em 2011, o jornalista libanês-sueco Kassem Hamadé obteve acesso a uma morgue secreta em Trípoli. Entre 17 corpos, um chamou-lhe a atenção: era invulgarmente alto (Musa al-Sadr media 1,98 metros) e apresentava um rosto semelhante ao do imã, apesar do estado avançado de decomposição. O crânio mostrava sinais de violência, possivelmente execução.

Kassem Hamadé fotografou o cadáver e recolheu fios de cabelo, alegadamente entregues depois a representantes do movimento Amal, fundado por al-Sadr. Contudo, a análise de ADN nunca foi divulgada.

A tecnologia entra em ação 

Décadas depois, a fotografia foi submetida ao algoritmo de Deep Face Recognition da Universidade de Bradford. Comparada com imagens conhecidas de al-Sadr, a análise atribuiu uma probabilidade elevada de correspondência, na ordem dos 60 pontos em 100, o que sugere tratar-se dele ou um familiar próximo.

Para validar o resultado, a equipa cruzou a mesma imagem com fotografias de familiares e com 100 rostos masculinos do Médio Oriente escolhidos aleatoriamente. O corpo assemelhava-se muito mais a al-Sadr do que a qualquer outra pessoa.

Silêncio e resistência

Apesar destes indícios, o partido Amal, hoje uma das principais forças políticas xiitas no Líbano, recusa aceitar que o corpo seja de al-Sadr. O líder do partido, Nabih Berri, insiste que o imã está vivo, possivelmente detido numa prisão líbia. Para muitos seguidores, essa crença tem um peso quase místico, ecoando a tradição xiita do “imã oculto”, que regressará no fim dos tempos.

A investigação da BBC em Trípoli, em 2023, acabou abruptamente quando a equipa foi detida durante seis dias pelos serviços secretos líbios, acusada de espionagem. Foram libertados após pressões diplomáticas do Reino Unido.

Segundo o jornal árabe Aljazeera, na esperança de finalmente forçar uma resposta, o Líbano mantém o filho mais novo de Kadhafi, Hannibal, preso desde 2015, embora nunca tenha sido julgado. Em 2023, entrou em greve de fome, mas a família de al-Sadr e os seus seguidores dedicados dizem que não deve haver concessões até que descubram o que aconteceu com o “imã desaparecido”.

Um desaparecimento que marcou a história

O mistério em torno de Musa al-Sadr vai além da tragédia pessoal. Investigadores acreditam que, se não tivesse desaparecido, podia ter reconduzido o Irão, e talvez o Médio Oriente, para uma via mais moderada antes da Revolução Islâmica de 1979.

Atualmente, a verdade continua por comprovar. A fotografia da morgue pode ser a pista mais sólida até agora, mas sem testes de ADN a dúvida permanece.

Entretanto, todos os anos, a 31 de agosto, milhares de seguidores no Líbano assinalam a ausência do seu líder com manifestações e orações. Para eles, al-Sadr não é apenas um homem desaparecido: é um símbolo de esperança, resistência e unidade.