Quem nunca viu uma fotografia publicada nas redes sociais de uma figura pública, ou de uma pessoa conhecida da sua esfera pessoal, com os seus filhos pequenos e achou muito querida e fez like? Ou viu um vídeo em que a criança diz algo muito engraçado e enviou para os amigos? Quem vê a faceta querida e engraçada da criança, esquece-se de que estes conteúdos foram partilhados com a cara da criança, com a voz da criança, na internet sem o consentimento da criança. A criança não pode consentir a partilha da sua imagem, porque não tem idade para compreender o que tal ato compreende.

De facto, a questão da proteção dos direitos de imagem e privacidade das crianças nas redes sociais abrange assuntos muito sérios, que vão desde a impossibilidade de consentimento na partilha, às consequências nefastas da mesma. Dada a prática comum da partilha de fotos das crianças por parte dos seus pais nas redes sociais, nasceu o neologismo “sharenting”, um termo conotado em 2010 nos EUA. (Repare-se que o problema mantém-se o mesmo quando as fotos das crianças são partilhadas por outros membros da família ou pessoas que socializam com a criança).

O direito à vida privada

Quando falo de fotos e vídeo, falo de quaisquer conteúdos que mostrem a identidade da criança, a cara, a voz da mesma. A primeira noção a ter em conta neste contexto é o direito da criança à privacidade. Um exemplo que mostra a importância de respeitar este direito, é o facto de Jessica Athayde ter decidido parar de mostrar o seu filho Oliver nas redes sociais, porque a criança começou a ser reconhecida no seu dia-a-dia por pessoas que lhe eram estranhas. Este tipo de decisão, já foi feita tanto por decisão pessoal, como no caso de Jessica e de outras figuras públicas, como estabelecida pela Justiça. Em 2015, o Tribunal de Évora decidiu que os pais separados de uma menor estariam proibidos de publicar fotos da criança nas redes sociais, já que respeitar o direito à vida privada é uma “obrigação dos pais, tão natural quanto a de garantir o sustento, a saúde e a educação dos filhos”. Este foi um acórdão pioneiro, que, sem referir o termo sharenting, apresentou devidamente a preocupação central do problema.

Para quem estranha o facto de haver um termo e deste ser apresentado em inglês, relembro que o uso deste tipo de termos é útil na medida em que facilita a pesquisa e o encontro de mais informação a nível global sobre o tema. Desta forma, torna-se não só relevante como extremamente útil dar nomes às coisas e, sempre que possível, o mesmo.

Nesse mesmo acórdão de 2015, são apontados os perigos da exposição de menores nas redes sociais, já que podem acabar nas mãos de “muitos predadores sexuais e pedófilos”. Ora, antes de avançarmos, entendamos uma coisa: mesmo que não houvesse predadores sexuais e pedófilos no mundo, continuaria a não ser inofensivo partilhar fotos das crianças nas redes sociais, porque violaria sempre o direito à vida privada e o respeito de não poderem consentir essa partilha ao serem crianças. Dito isto, avancemos.

As consequências da partilha, para lá do desrespeito dos direitos da criança

A partilha de fotos dos filhos é geralmente potenciada pelo gosto dos pais em partilhar a sua criança tão querida, bonita e fofinha, e até engraçada, para o mundo. Quem é que não acha querido ver uma criança a fazer ou a dizer algo engraçado num vídeo? No entanto, um vídeo destes, ou uma partilha inocente de fotos da sua filha ou do seu filho podem acabar nas mãos erradas.

Segundo estudos de especialistas, 72% do material apreendido a pedófilos ou redes de partilha de conteúdo de exploração sexual infantil é composto por “imagens comuns, não sexualizadas, de menores”, muitas delas obtidas graças à partilha feita pelos próprios pais nas redes sociais. Os estudos também concluíram que 89% dos pais e mães publicam fotos ou vídeos nas redes sociais pelo menos uma vez por mês.

Nos tempos em que vivemos, graças ao avanço da tecnologia, apenas com uma foto da cara de uma criança consegue-se gerar inúmeras imagens com Inteligência Artificial com o intuito de explorar sexualmente a identidade daquela criança. Se antes da IA estas montagens já eram possíveis, as novas tecnologias permitem agora que pessoas sem a capacidade de mexer em software de edição consigam gerar este tipo de imagens. Não só a partilha de imagem e de vídeo de menores são alvo: também a voz das crianças pode ser usada para falsificar mensagens de voz.

Se até agora refletimos nos direitos da criança à sua privacidade e nas consequências nefastas da partilha de fotos e vídeos de menores dentro do contexto da exploração sexual infantil por terceiros, resta-me referir mais uma grave consequência: as imagens das crianças e os seus vídeos engraçados enquanto menores sobrevivem ao tempo, criando uma pegada digital que, para além de poder não agradar às crianças, pode potenciar casos de bullying. As imagens dos filhos partilhadas pelos pais podem ser usadas para fabricar perfis falsos e para a criação de memes que vão seguir aquela pessoa para o resto da sua vida. Aliás, podemos voltar um passo atrás no raciocínio e centrarmo-nos numa questão de extrema importância: o que as próprias crianças sentem ao ver a sua imagem partilhada pelos pais. De facto, 42% delas dizem sentir-se envergonhadas com as partilhas.

Após tudo isto, será que vale mesmo a pena partilhar a foto do seu filho, mesmo que seja com a maior das inocências e boas intenções?

Uma nota conclusiva: que a minha crítica não apoquente o apreço que por vocês tenho

Não é difícil de perceber que uma figura pública recebe muita interação, mensagens de carinho, likes e maior relevância digital quando partilha a sua linda família. Aliás, há influencers que focam a sua fonte de rendimento, pelo menos em parte, na partilha de situações insólitas, queridas e engraçadas em família. Não faltam exemplos a nível nacional e internacional. No entanto, felizmente, também não faltam exemplos de figuras públicas que se abstenham de partilhar fotos reconhecíveis dos seus filhos menores, como é o caso de Hailey Bieber: aquando a celebração do primeiro aniversário do seu filho Jack Blues, o máximo que vemos do bebé é a sua nuca. Para todas as pessoas, e em especial figuras públicas com grande alcance, que partilham fotos e vídeos das suas crianças menores, pergunto, depois de lerem as consequências que isso pode trazer, valerá mesmo a pena publicarem esses conteúdos?

Pensando para lá da capitalização da fofura das crianças, volto a referir, consigo compreender a vontade de partilhar um momento querido que se teve com o filho, a neta, o sobrinho, a filha da amiga. Partilha feita sem qualquer maldade, mas antes orgulho naquele ser lindo e maravilhoso que a criança é. No entanto, infelizmente, temos de ver para lá das boas intenções.

Cabe aos pais e mães protegerem os seus filhos das consequências da partilha das suas fotos nas redes sociais. Cabe às mães e pais garantir o direito dos filhos à sua vida privada. Cabe às pessoas que seguem as figuras públicas que o decidem fazer, aceitar essa proteção e não “pedir” que revelem a cara das suas crianças.

Apelo a que pensem muito bem antes de publicarem fotos ou vídeos nas redes sociais dos vossos filhos, netos, sobrinhos ou crianças com quem socializem. Aliás, apelo a que se abstenham de os partilhar. Pela proteção da sua privacidade. Para prevenir que as suas fotos não acabem numa rede de exploração sexual de menores. E, acima de tudo, porque aquela criança não pode consentir que a sua imagem seja publicada e fique disponível na internet possivelmente para lá dos seus anos de vida.

Sim, o teu filho é muito lindo e queridíssimo e é amoroso com a mãe, mas, se fosse a ti, pensava 100 vezes antes de as publicar.

Concluo reiterando que não culpo quem, na sua ingenuidade, tem vindo a partilhar, nas redes sociais, fotos das crianças que ama e pelas quais nutre carinho. Peço apenas que repensem as suas práticas.

Dito isto, não posso mandar na casa dos outros, mas posso dar a minha opinião informada. Aqui está ela. Quanto à minha vida, uma coisa é certa: nunca irão ver fotografias dos meus sobrinhos partilhadas nas minhas redes sociais.