Algures no despertar do século XX, o renomado arquiteto Francisco Augusto Silva Rocha — o “Gaudí português” — decidiu desenhar e erguer, em Aveiro, a sua própria residência. Este edifício discreto, mas com vários elementos singulares e característicos do estilo Arte Nova, tão característico da malha urbana da cidade nesta altura, continua a ser uma das presenças mais marcantes nesta zona.
Em relação direta com este espaço surge, atualmente, a Casa de Sá, a partir de um desafio muito específico. O arquiteto queria que a intervenção estabelecesse uma relação com aquilo que está à volta, mas sem deixar de pertencer a uma paisagem contemporânea. “Nunca nos passou pela cabeça imitar um tempo que não é o nosso”, explica à NiT Tiago do Vale.
Implantada num lote vazio, esta moradia surge também num território marcado pela presença anónima de edifícios residenciais indiferenciados, construídos na transição para o século XXI. Para os clientes, um casal com dois filhos, este “gesto afirmativo” foi uma “ótima oportunidade” para aliar uma habitação qualificada e um pequeno apartamento para rendimento, no rés do chão.
“Em diferentes circunstâncias, a zona teria visto mais um prédio de apartamentos, o que seria uma enorme agressão para o local. Não quisemos fazer o mesmo”, acrescenta o arquiteto, embora admita que “fazer aparecer uma peça tão claramente contemporânea” pode não ser unânime.
Por um lado, retoma os ritmos verticais e horizontais da fachada da casa de Silva Rocha, mantendo o esquema de dois pisos, três vãos e janela central nas águas-furtadas, com pátio superior nas traseiras, uma configuração recorrente na rua. O nicho sob “um generoso óculo” na parte de baixo é uma referência à peculiar janela redonda da habitação ao lado.
Enquadra-se na envolvente.
A Casa de Sá vive também do contraste de cores entre o preto, na parte superior, e o branco no piso térreo. A escolha do atelier foi uma solução “para resolver o melhor possível a relação da casa com a rua e os três vãos que eram muito opacos.”
Tiago optou pelo ripado, que ajuda a diferenciar a chamada, como associação aos grandes armazéns que havia em Aveiro, muitas vezes pintados de preto, bem como as casas de Ria. “Hoje em dia, são conhecidas pelas riscas coloridas, mas originalmente eram pretas e ocre ou sangue de boi”, explica.
Depois, estabeleceu outros paralelos diretos como a pedra calcária que define o embasamento ou os azulejos cerâmicos, que revestem o piso térreo, refletindo as texturas do edifício original. Nas áreas superiores, houve ainda um jogo entre a serralharia e a madeira que se prolongam no interior.
Esse posicionamento nunca sobrevive a passagem do tempo – olhamos para trás e o que é imitação não é qualificado. Portanto, esta proposta vai buscar a mesma volumetria do edifício do lado, os seus ritmos horizontais, a janela central na cobertura, a divisão dos pisos e até, mesmo que não seja aparente, o ritmo dos vãos.
“Estas associações são bastante diretas e identificáveis, mas, ao mesmo tempo, com alguma irreverência”, acrescenta o responsável, que recusou a fachada principal face à moradia pré-existente para, no fundo, “mostrar que há uma hierarquia”. “Não queremos sobrepor-nos, mas criar um diálogo pacífico.”
Criou-se também uma relação “bastante intensa” com a rua, daí ter apostado num rés do chão mais opaco. “A rua tem um tráfego considerável, então era importante fazer algum tipo de separação.”
É, por isso mesmo, dado algum destaque ao pátio nas traseiras, voltado para norte. Não há luz direta, nem raios solares. O resultado desta distribuição acaba por ser um ligação próxima entre as áreas sociais e a rua, tirando partido da iluminação natural, enquanto as mais privadas relacionam-se apenas com as traseiras. Os últimos quartos foram colocados nas áreas furtadas.
Tiago conclui: “Cada lugar tem a sua própria cultura construtiva. Queremos, acima de tudo, propor objetivos que pertencem aos sítios. Muito antes da nossa afirmação, de nos pertencerem a nós, tem de pertencer ao local em que se insere”.
Carregue na galeria para ver mais imagens da Casa de Sá do fotógrafo João Morgado.