Já se encaminhando para a reta final, o Festival de Veneza finalmente exibiu um filme que despontou como o favorito ao Leão de Ouro. “The Voice of Hind Rajab”, da tunisiana Kaouther Ben Hania, tem vários ingredientes que o colocam adiante dos rivais, a começar pela temática atual e urgente —fala sobre um fato ocorrido no atual conflito em Gaza.
O filme tem um ponto de vista sobretudo antibélico, mas fica evidente o caráter de protesto contra a desmesura entre a brutalidade estatal israelense e a fragilidade da população civil palestina. Além disso, é dirigido por uma mulher que vem da África, continente costumeiramente ignorado nos grandes festivais.
Mas o filme tem tudo para sair premiado também pela sua excelência. Conta a história real de uma garota de seis anos que ficou por horas conversando com uma equipe de socorro médico em Gaza, logo depois que o carro onde estava com sua família foi atingido por um ataque israelense. A equipe procura entretê-la enquanto tenta mobilizar uma ambulância para o local, mas a burocracia impede que o atendimento seja feito a tempo. Afinal de contas, os próprios médicos poderiam sair feridos —ou mortos em uma operação apressada, sem seguir protocolos de segurança.
Os fatos ocorreram em janeiro de 2024, e áudios da menina viralizaram na internet. Quando ouviu o drama da garota, Hania decidiu fazer um filme sobre o caso. Assim como “As Quatro Filhas de Olfa”, indicado ao Oscar de melhor documentário neste ano, o longa mescla realidade com elementos de ficção. Os áudios utilizados trazem as falas da própria garota, enquanto atores interpretam a angustiada equipe que conversa com ela por telefone.
O filme é dilacerante. Com uma dose cavalar de frieza, pode-se até argumentar que existe sensacionalismo em querer provar um ponto usando o desespero real de uma criança completamente desamparada, diante de uma guerra. Mas há certa amoralidade em analisar o filme por esse ângulo: quando muito, o que existe de sensacionalista e amoral no longa é o que realidade em Gaza reservou à menina, e não o filme, que é sobretudo uma denúncia de uma tragédia contemporânea.
Igualmente na disputa, o italiano Pietro Marcello apresentou “Duse”, sobre a vida da mítica Eleonora Duse, a maior atriz do teatro italiano de todos os tempos. Na virada do século 19 para o 20, foi a grande rival da francesa Sarah Bernhardt, a grande lenda dos palcos gauleses. Mas Duse era mais jovem e tinha um estilo distinto: enquanto Bernhardt mantinha todos os vícios de atuação exagerada do passado, a italiana tinha uma presença de palco mais moderna, introvertida. De certo modo, já trazia a gênese do método Stanislávski, em que atores usam sua própria interioridade para compor seus papeis.
“Duse” se concentra em sua velhice, quando a atriz já havia parado de atuar, decidindo retornar aos palcos repentinamente —a volta ao trabalho seria uma nova forma de se manter viva, após anos doente.
No seu único registro fílmico, “Cinzas”, de 1916, Duse mostra o estilo de atuação que a tornou célebre: os gestos expressivos, amplamente dominados, intercalados com longas pausas motoras, que davam uma ideia muito maior da tormenta emocional da personagem que qualquer movimento. Era uma atriz introspectiva, mas que ampliava a dimensão intimista de suas personagens pela súbita abertura gestual, para se fazer compreender no palco e na tela.
Valeria Bruni Tedeschi, escolhida por Marcello para interpretar Duse, em geral trabalha em registro praticamente oposto: ela costuma elaborar os dramas de suas personagens a partir de um histrionismo latente da própria atriz, quase uma histeria, mas que ela torna minimalista, contido, de modo a sua performance não soar exagerada como seus impulsos iniciais talvez a levassem a fazer. A não ser pelo fato de ter uma voz naturalmente baixa, pequena —também uma das características de Duse—, sua escolha para interpretá-la parece um inacreditável erro de escalação.
Ainda assim, Tedeschi tem momentos verdadeiramente magníficos: nunca ela esteve tão intensa, marcante como aqui. Sabe Deus o quanto sua performance tem do que a Duse real fazia —se de fato tem alguma coisa—, mas o que a atriz nos mostra é nunca menos do que notável.
Mas é uma grande performance em retalhos —a Duse concebida por Marcello não tem uma unidade ou mesmo um crescendo: é um amontoado de peças esparsas que nunca formam um painel. Ou mesmo um labirinto, se a intenção fosse tornar a italiana um poço de mistérios, uma mulher indecifrável.
O problema é que, diante de uma figura que entrou para a história com uma imagem tão vaporosa como a Duse real, o mínimo que se espera de um filme sobre ela é que traga alguma palpabilidade sobre quem ela foi. Rarefeita como a Duse de Marcello é, o projeto deixa de fazer sentido —chegamos ao fim do filme conhecendo ainda menos sobre ela do que antes de o longa começar.