A referência constante pelas personagens portuguesas do livro aos Açores, uma saudade permanente apesar da pobreza das ilhas de onde tinham saído, também é uma regra nos emigrantes?
Tenho privado com emigrantes açorianos e, se pudesse apontar um fator comum na relação com as suas origens, seria a facilidade com que deixam verter uma lágrima quando se fala do lugar de onde vêm. É o chamado long-distance nationalism, que dificilmente sucede quando nunca tivemos de abandonar a pátria. A minha experiência de pseudo-emigrante na Irlanda pode também ter servido como catalisador para conseguir descrever esse saudosismo emigrante.
Para construir a personagem Salvador Silver, contou com literatura da época? Um jovem gangster luso-americano teria de ser daquela maneira?
Falei com especialistas, li dezenas de livros (do John dos Passos ao Os Portugueses no Faroeste: Terra a Perder de Vista), vi documentários e filmes, procurei mapas e jornais americanos, incluindo edições antigas do Boston Globe. Também viajei aos EUA em 2023, consultei arquivos, prisões e museus. Montei um puzzle intricado e preenchi os vazios. Por exemplo, para escrever sobre a fuga do protagonista com a rapariga circense, tive de me aprofundar no mundo do circo, no tempo em que Chaplin fazia sucesso no cinema e Houdini fascinava com o escapismo.
Era a época da Lei Seca nos Estados Unidos. Conseguiu retratá-la muito bem no romance. Também os emigrantes portugueses foram afetados, alguns deles com destilarias ilegais ou traficantes mesmo. O algarvio Manuel Zorra, ou Many Zorra, também dava um romance?
Sim, havia açorianos que produziam bebidas espirituosas em alambiques clandestinos nas suas caves. Dizia-se “gin de banheira”, expressão que ficou conhecida na resistência à Lei Seca. Creio que a história de Manuel Zorra deu mesmo origem a um romance, mas escrito em inglês e publicado nos EUA. Em Portugal, são histórias desconhecidas ou que acabam abandonadas. Mas há inúmeras, muitas envolvendo portugueses. Devo confessar que tive dúvidas em avançar com a escrita deste livro: entrar na mente de um criminoso pode mexer connosco, mesmo tendo a psicologia como aliada. Além disso, pela primeira vez abordei a história de um anti-herói, ainda por cima introvertido. Felizmente, os meus livros têm sido bem recebidos pela crítica literária e pelos leitores, mas admito que escrever sobre protagonistas densos e pouco consensuais é sempre um risco.
Sacco e Vanzetti são importantes na narrativa. Foi mesmo um escândalo na América, e fora dela, a condenação?
Hoje é incontestável que Sacco e Vanzetti não foram os autores dos crimes que os levaram a tribunal. O caso teve tal repercussão que inspirou filmes, documentários, peças de teatro, músicas, pinturas e até desencadeou greves e manifestações em massa, algumas delas marcadas por grande violência, em várias partes do mundo, em defesa da absolvição. O funeral deles teve uma assistência de mais de cem mil pessoas. É um dos casos legais mais estudados nos EUA, pelos piores motivos: levou inocentes à cadeira elétrica (e a pena de morte continua a ser aplicada nalguns contextos). O que quase ninguém conhecia era a figura de um criminoso açoriano que chegou a tentar assumir parte da responsabilidade para os ilibar.
Esta época do romance é também uma época em que os estrangeiros são malvistos na América. Percebe porquê?
Os estrangeiros eram vistos com desconfiança porque aceitavam salários baixos, havia grandes diferenças culturais, preconceitos étnicos e medos políticos, sendo muitas vezes associados a ideias radicais ou atividades ilícitas, o que gerava hostilidade e segregação. Enfim, eram os Loucos Anos Vinte. Mas é importante pensar se não estamos nós a viver outros loucos anos vinte, embora num novo século.
Os Açores e os açorianos são um manancial para um romancista?
Trago os Açores para a escrita por afeto à terra onde nasci, não por imposição. Tenho muitos outros temas literários que gostaria de explorar e que não se ligam diretamente aos Açores, preciso de refletir sobre o que vou escrever a seguir. Nos contos que tenho vindo a escrever, o tema da ilha é mais raro, por exemplo. Ainda assim, acredito que o arquipélago continuará a aparecer, ainda que sob outras formas e perspetivas. Creio que existe uma mística muito própria que rodeia esta parcela atlântica.
Como vê hoje a comunidade portuguesa nos Estados Unidos, sobretudo a que é de origem açoriana?
Com respeito e admiração. Na sua maioria, pessoas de bem e com grandes capacidades. Uma boa parte da minha família emigrou, e respeito-os pela coragem que tiveram e a pertinácia de refazer a vida noutro lugar. Por vezes, sinto que também deveria ter arriscado noutro país, e isso está patente nos meus livros. Mas também é necessária coragem para ficar, sobretudo quando parece que estamos numa luta por uma sociedade melhor que podemos nunca vencer.
Está a caminho a edição em inglês deste Condenação?
Para o mercado dos EUA, já está disponível em eBook, mas na versão portuguesa. O romance Ilha-América está em vias de ser traduzido por Scott Edward Anderson e A Escrava Açoriana já está traduzido para inglês por Diniz Borges, mas ainda estou em busca de agenciamento ou editora com distribuição além-fronteiras. Creio que este Condenação também reúne todas as condições para ser publicado em inglês, espero poder dizer em breve que tal vai mesmo acontecer.