Os desafios impostos às mulheres afegãs pelas normas sociais do regime talibã têm-se refletido até no resgate após o sismo de domingo que fez 2.200 mortos e mais de 4 mil feridos no país. Testemunhas no terreno citadas pelo New York Times e as próprias Nações Unidas denunciaram que muitas tiveram tratamentos adiados ou foram mesmo deixadas debaixo dos escombros.

Ao jornal norte-americano, Bibi Aysha, da aldeia de Andarluckak, na província de Kunar, contou que, mesmo após 36 horas de espera, a chegada da equipa de resgate totalmente masculina à localidade trouxe-lhe mais medo do que alívio, já que as regras proíbem que homens toquem em mulheres fora da família, mesmo nestes casos de emergência.

E os seus medos, disse, tornaram-se mesmo realidade: as equipas de emergência correram para ajudar feridos homens e crianças, mas deixaram mulheres adultas e adolescentes de ladoalgumas a sangrar.

“Juntaram-nos a todas num canto e esqueceram-se de nós“, relatou a afegã, que revelou que nem uma socorrista chegou a Andarluckak até quinta-feira — quatro dias depois do terramoto.

Já num comunicado publicado esta terça-feira, a ONU Mulheres para o Afeganistão apelara para que “as mulheres e as raparigas fossem priorizadas” na resposta ao sismo. “As mulheres e as raparigas serão novamente as mais afetadas por este desastre, por isso devemos garantir que as suas necessidades estejam no centro da resposta e da recuperação”, escreveu a representante especial da agência, Sarah Ferguson.

Um cenário confirmado ao jornal norte-americano por Muhazeb Tahzeebullah, um dos voluntários homens, que confessou que as equipas de resgate masculinas estavam “hesitantes em tirar as mulheres de debaixo dos escombros dos edifícios“, chegando mesmo a puxar mulheres mortas pelas roupas de maneira a não lhes tocarem.

Muhazeb viajou para a aldeia de Mazar Dara, também na província de Kunar, e revelou que, no terreno, parecia que as “mulheres eram invísiveis”, com algumas a serem deixadas debaixo dos destroços à espera de outras para as virem salvar.

“Os homens e as crianças foram atendidos primeiro, mas as mulheres ficaram sentadas à parte, à espera de cuidados“, detalhou.

Para a representante especial da ONU Mulheres, a falta de mulheres nas equipas de resgate é uma das principais preocupações, já que, devido a estas regras sociais, “mulheres e raparigas podem ficar sem assistência ou sem informações que podem salvar vidas nos próximos dias“.

Segundo a televisão alemã Deutsche Welle (DW), citando fontes nas províncias afetadas de Kunar e Nangarhar, existe nestas regiões uma “grave escassez de médicas“, algo que tem complicado os trabalhos de salvação.

Também à DW, a ativista afegã pelos direitos das mulheres Fatemeh Rezaei contou que médicas daquelas regiões se ofereceram para entrar ao serviço no salvamento. Mas nem os talibãs deixaram, nem os homens de muitas aldeias quiseram essa ajuda.

“Temos informações sobre várias mulheres feridas que morreram devido à falta de médicas“, relatou a dentista afegã Zahra Haghparast, que confirmou que a assistência feminina não chegou porque não a deixaram chegar.

“Sabe quantas médicas e enfermeiras no Afeganistão estão agora prontas para partir imediatamente para ajudar essas mulheres feridas?“, questionou a dentista de forma retórica, acrescentando que “os talibãs não lhes dão permissão“.

Para além das dificuldades no tratamento, denuncia ainda a ONU, também há especiais dificuldades no acesso a outras “necessidades mais urgentes das mulheres e raparigas”, tais como “utensílios de cozinha, produtos de higiene pessoal e bens médicos essenciais”. As mulheres têm ainda desafios acrescidos no acesso a abrigos de emergência e a cobertores para se protegerem, explicaram.

Bibi Aysha comprovou isto mesmo, tendo passado as últimas três noites a dormir ao relento. A chuva que se tem feito sentir na sua zona, contou, tem-na impedido de chegar a um abrigo ou à cidade onde trabalha o seu marido.

“Deus salvou-me a mim e ao meu filho”, disse Aysha ao New York Times, revelando porém que, naquela noite de domingo, entendeu que “ser uma mulher aqui significa que somos sempre as últimas a ser vistas“.