E se a natureza resolvesse cobrar tudo o que a humanidade tem destruído planeta afora? E se os bichos, as plantas e o mundo mineral mergulhassem numa revolta tal que fizessem a humanidade se curvar? E se os cães fossem capazes de elaborar de forma racional todo o comportamento de seus tutores e entendessem perfeitamente que fazem parte de uma estrutura de dominação? A cubana Elaine Vilar Madruga e a colombiana María Ospina Pizano ousaram imaginar um mundo ditado por tais regras em dois romances que olham para a humanidade com um um misto de desapreço, repulsa e lamento. 

Elaine e Maria fazem parte de uma geração de autoras latino-americanas que têm colocado a natureza em primeiro plano e a atuação humana sobre o planeta e seus outros habitantes em evidência. Naturalmente herdeiras de um realismo fantástico que contaminou toda a literatura da América Latina, em maior ou menor grau, elas são também expoentes de uma geração dedicada a escrever narrativas que mesclam situações relacionadas à ecologia, meio ambiente, destruição e terror. 

São romances pautados pelo colonialismo ambiental, com narrativas profundamente ancoradas em noções como a exploração humana de terras e bichos e o extrativismo desenfreado. “A literatura latino-americana há séculos pensa nesse tema. Não é algo novo, nem algo que surja a partir do realismo mágico, embora muitos autores e autoras tenham interesse em brincar com os limites da realidade e da razão para narrar histórias do extrativismo”, avisa Maria Ospina, que hoje se divide entre a Colômbia e os Estados Unidos. “Não estamos diante de um novo gênero só porque muitas escritoras estão interessadas nesse tema e escrevam sobre ele, embora me pareça maravilhoso que o façamos e que estejamos sendo publicadas — coisa que antes não acontecia.” Para a autora, a literatura latina vive um novo momento de experimentação rico e emocionante, capaz de renovar e ampliar uma corrente forte e heterogênea na região.

É o caso de Só um pouco aqui, no qual Ospina dá voz aos cães de rua de Bogotá, a passarinhos em confusão migratória graças à destruição de bosques, a besouros perdidos e bebês porcos-espinhos órfãos. São seres deslocados por variadas intervenções humanas no cenário urbano e rural. E também é o caso de O céu da selva, romance no qual Elaine imagina uma floresta protagonista, pronta a tomar das mulheres os filhos paridos unicamente para alimentar a fome das plantas. 

No romance da cubana, uma mulher foge da violência de uma suposta ditadura misógina, mas encontra, ao se esconder na selva, uma lei perversa: se quiser se beneficiar do esconderijo, terá que alimentar o ventre da floresta. São vários os tipos de violência tratados por Elaine na narrativa: há aquela sofrida pelas mulheres ao longo de toda a existência humana, há a proporcionada pela destruição da natureza e há, ainda, a orquestrada pelos homens e seus jogos de poder. A avó e a bisavó da autora serviram de inspiração, mas o romance vai além. “Também é atravessado por um eixo da história das mulheres no mundo todo, das mulheres latino-americanas, da violência institucional, familiar, estatal que elas sofrem em diferentes lugares do mundo — e que não são histórias do passado, não são histórias encerradas. Mesmo que eu diga agora que são inspiradas nas histórias das minhas bisavós, também sempre menciono que são histórias de mulheres de hoje”, explica a autora.

A selva acabou por se tornar um personagem, embora, no início, a autora a encarasse mais como um cenário de opressão e terror ideal para contar a história de uma mulher e sua prole condenadas à perversidade. À medida que a escrita tomava forma, ela se deu conta dos contornos dessa personagem. “Eu queria escrever um romance que tratasse das violências, muitas vezes naturalizadas e normalizadas, que os humanos impõem à natureza — a violência que exercemos sobre o tecido do natural, as violências que exercemos sobre outras formas de vida que não sejam a humana”, explica.

Só um pouco aqui, de Maria Ospina Pizano, também traz para o primeiro plano o mundo dos bichos, mas não é um romance distópico ou apocalíptico, como o de Elaine. Tem uma delicadeza na tentativa de imaginar a voz desses animais cuja convivência com a humanidade é inevitável e, eventualmente, cruel e fatal.

Entrevista//Maria Ospina Pizano

Como surgiu a ideia de transformar os animais em personagens em Só um pouco aqui?

Este livro vem sendo gestado desde que, pequena, eu caminhava com minha avó, minha mãe e vários cães por antigos caminhos entre bosques andinos da Colômbia, onde cresci. Foi ali que nasceu minha curiosidade profunda pelas formas como os animais não humanos e outros seres participam da ampla história do mundo e de dimensões de espaço e tempo que nos transcendem, mas que se cruzam com as nossas. Meu deslumbramento com o movimento e as migrações dos pássaros, minha curiosidade por como atravessam o território, foi outro dos motores deste relato. Há uma década, observo aves e as busco nos bosques. Uma tangará-escarlate, um pequeno pássaro migratório que é um dos personagens do livro, que encontrei exausto na minha varanda em abril, me inspirou a escrever a obra. 

Por que explorar essa dinâmica entre os animais, as paisagens em ruínas e os humanos em forma de ficção? 

A ficção, para mim, é um território fértil de exploração das possibilidades e limites da linguagem, me permitiu especular sobre as relações entre espécies, ou seja, as complexas redes e fricções afetivas e materiais que surgem entre nós e outros seres. Também a ficção me deu a possibilidade de me perguntar sobre a maneira profunda em que, a partir de uma racionalidade diferente da nossa, desde outras ontologias de espaço e tempo, os animais não humanos concebem o mundo e testemunham o que fazemos com ele. Como o sofrimento deles está atado às nossas vidas e como alguns de nós nos comovemos com isso? Interessava-me concebê-los como pessoas não humanas, e perguntar por sua subjetividade, sua vida emocional, sua forma de percorrer o mundo. Para mim, essas perguntas só poderiam ser feitas a partir da ficção.

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Como deslocamento e transitoriedade se tornaram temas de interesse?

Especular sobre como os animais vivem a mudança de casa (tantas vezes provocada por nós), o que poderia constituir um lar para eles e como seu ato de habitar complica as noções de propriedade e pertencimento foi a forma mais lúcida que encontrei para abordar esses temas, que sempre transcendem a dimensão humana. Em qualquer reflexão sobre o lar humano, sobre sua brevidade, está implícita a pergunta: quais animais deslocamos e quais ficam? Quem testemunha nossa errância? Ou seja, a pergunta política de quem é o hóspede e quem é o anfitrião. E há ainda a consideração sobre os direitos dos animais — refiro-me a um direito que transcende a dimensão legal, ao direito que eles têm de considerar o mundo sua casa.

A literatura latino-americana tem uma vocação particular para falar sobre devastação ambiental?

O extrativismo, em suas diversas manifestações, definiu a história da América Latina desde a época colonial e continua marcando a vida cotidiana da região. Por isso, não é coincidência que sua literatura sempre tenha desempenhado um papel fundamental em narrar essas dinâmicas tão complexas e em criticá-las, dada sua função de dar conta da história e questionar dinâmicas de poder. Mas em muitas regiões do sul global — como na África ou no sudeste asiático, cujos legados coloniais também foram determinados pelo extrativismo — também houve interesse em narrar as relações entre humanos e natureza. O que é certo é que, na América Latina, quem escreve está marcado por uma tradição literária, fílmica e cultural ampla, de enorme força, que não podemos ignorar. Estamos sempre, de algum modo, respondendo a ela.

Só um pouco aqui

De María Ospina Pizano. Tradução: Silvia Massimini Felix. Instante, 176 páginas. R$ 74,90

Entrevista//Elaine Vilar Madruga

Qual o ponto de partida de O céu da selva?

Queria falar sobre diferentes tipos de maternidades — não necessariamente as maternidades tradicionais ou desejadas, por assim dizer — mas sim as maternidades consideradas preteridas, subalternas. As outras maternidades, as maternidades da alteridade, das quais não se fala. E, com base em todos esses eixos de sentido, nasceu a ideia de O céu da selva, um romance que eu queria que fosse distópico, que abordasse o terror do corpo — a era do body horror — que falasse das maternidades forçadas como um olhar sobre o terror institucional e cultural que as mulheres sofrem. E também queria que fosse um romance que falasse sobre a América Latina, em seus cheiros profundos e também em sua beleza profunda e macabra.

A narrativa traz uma mistura de linguagem simbólica e poesia. Como equilibrar esses dois aspectos?

Acredito que O céu da selva é um excelente exemplo da mistura de gêneros que eu gosto de trabalhar na minha prática literária, na minha criação artística. Eu não acredito nas fronteiras estipuladas dos gêneros; ao contrário, acredito que a literatura é uma só — e que ela é feita justamente da mistura, do mestiço, dos cruzamentos. Não acredito nas fronteiras literárias e, por isso, gosto de transitar entre territórios: da poesia à narrativa, incorporando elementos do terror, do fantástico, do sobrenatural — mas tudo isso com uma base profunda, com um contato profundo com os tecidos do real. Porque acredito, por exemplo — pensando no macabro, no terror — que os temas que nos assustam enquanto cidadãos de um mundo contemporâneo cada vez mais distópico, cada vez mais estranho, são temas que estão enraizados, de alguma forma, no mundo que nos coube viver e que colocam em cena politicamente questões que importam no nosso presente: como os deslocamentos, os feminicídios, os transfeminicídios, as violências culturais, o terror das maternidades, o terror dos cuidados — entre tantos outros, é claro.

O livro propõe uma grande questão: e se a natureza decidisse tirar de nós aquilo que tiramos dela. Como chegou a essa ideia? 

O imenso cinismo do androcentrismo em que vivemos, no qual acreditamos — e a própria palavra diz isso — que o homem é o centro e a medida de todas as coisas. Que a humanidade é o centro e a medida de tudo, e que esse critério relega todas as outras formas de vida à periferia. Me agradava uma proposta radical que trouxesse uma natureza que apresentasse a mesma ferocidade que nós, humanos, temos em relação a ela. Talvez, uma ideia de inversão de poderes: trabalhar com essa inversão, com essa pergunta fundamental — o que faríamos se não estivéssemos na posição do caçador, mas sim da presa? Da criatura caçada? Acho que esse foi um princípio radical de exploração — um princípio que nos obriga a questionar nossos próprios limites civilizatórios, nossos próprios conceitos sobre o que significa ser humano. E, acima de tudo, nossa visão diante da natureza e da vida.

O céu da selva

De Elaine Vilar Madruga. Tradução: Marina
Waquil. Instante 240 páginas. R$ 74,90

 

  • Elaine Vilar Madruga, escritora cubana

    Elaine Vilar Madruga, escritora cubana
    Foto: Mauro

  •  María Ospina Pizano, escritora colombiana

    María Ospina Pizano, escritora colombiana
    Foto: JULIA LUCKETT

  • Só um pouco aqui
De María Ospina Pizano. Tradução: Silvia Massimini Felix. Instante, 176 páginas. R$ 74,90

    Só um pouco aqui
    De María Ospina Pizano. Tradução: Silvia Massimini Felix. Instante, 176 páginas. R$ 74,90

    Foto: Instante

  • O céu da selva
De Elaine Vilar Madruga. Instante, 240 páginas. R$ 74,90

    O céu da selva
    De Elaine Vilar Madruga. Instante, 240 páginas. R$ 74,90

    Foto: Instante

Nahima Maciel Repórter

Repórter do Correio Braziliense desde 2000 com experiência na cobertura de Cultura, especialmente artes plásticas, literatura e teatro.