O (ainda) presidente da Câmara de Lisboa faz tudo para se agarrar ao lugar. Esconde-se atrás do presidente da Carris e muda a sua teoria, em tempos tão dura, sobre responsabilidade política. É todo um retrato sobre Moedas. Por alguma razão, em tempos, lhe chamavam “moedinhas”
Não conheço o presidente da Carris, Pedro Bogas. Suspeito que nunca o tenha visto antes das suas conferências de imprensa destes dias. Mas é evidente que o gestor que deu a cara pela Carris, que garantiu o cumprimento de procedimentos, que assegurou vistorias e manutenção, é um homem destroçado. O tempo, e as investigações, demonstrarão a verdade (ou não) das suas garantias. Mas não consigo sequer imaginar o que será estar naquele lugar, nestas circunstâncias. Há cargas que não se alijam, por muita certeza que se tenha do cumprimento de regras e procedimentos. Há 16 mortos, há feridos, e há uma ferida aberta no coração de uma cidade em estado de choque, e isso aconteceu com a Carris, sob a chefia de Pedro Bogas. Afastada que está a hipótese (remota) de uma sabotagem, sabemos que o que aconteceu é responsabilidade da Carris. Não desejaria tal sorte a ninguém.
Por isso me questionei, nestes últimos dias, por que razão o presidente da Carris não fez aquilo que me parecia óbvio: demitir-se do cargo, ainda que disponibilizando-se para acompanhar os trabalhos dos investigadores até à publicação do relatório preliminar, que estará pronto daqui a pouco mais de um mês. Assumia as suas responsabilidades imediatas, mas sem desertar e fazendo cada demárche necessária ao apuramento da verdade.
Soube-se, entretanto, que Pedro Bogas de facto se demitiu. E fê-lo logo na quarta-feira, o dia do desastre. Pôs o seu lugar à disposição de Carlos Moedas, que não aceitou a demissão com um argumento definitivo. “Aqui ninguém foge”. Ficamos a saber que para Carlos Moedas, assumir responsabilidades e retirar daí conclusões é fugir.
Percebe-se a lógica de Moedas. Enquanto o presidente da Carris lá estiver, funciona como escudo humano que protege o presidente da Câmara. É evidente que há uma responsabilidade primeira que é da empresa de transportes. Mas se Pedro Bogas sair de cena, Moedas, o responsável político, fica exposto e não tem como se esconder.
A ambição política de Moedas cega-o. Ele tem-se em tão boa conta e tem tantos planos para si próprio, que nada, nem a maior tragédia de que há memória em Lisboa, o desvia do seu caminho. E leva-o mesmo a transformar um gesto nobre num ato vil: para Moedas, assumir responsabilidades é fugir a elas.
Nem sempre Moedas pensou assim. A sua ética é elástica. Já lá iremos.
Aproveitamento político? Sim, do poder
Aplico a Moedas e a Luís Montenegro a mesma empatia que a Pedro Bogas. Foi no seu turno que aconteceu a tragédia da Calçada da Glória, que pôs Lisboa nos noticiários internacionais e nos deixou, coletivamente, uma ferida aberta, e uma dor que foi, também, sentida nos países cujos cidadãos perderam a vida num dos pontos mais turísticos de Lisboa, o principal íman turístico de Portugal. Até em países sem vítimas a chorar o caso foi notícia grande. No Japão, um nome fez com que se temesse a morte de dois nipónicos, e o caso teve ampla cobertura noticiosa – veio-se a ver, e as duas pessoas com nomes japoneses eram, afinal, as duas vítimas canadianas, ambas nipo-descendentes.
Acredito que esta é uma notícia que necessariamente abala o presidente da Câmara. E que abala o chefe do Governo. Moedas estava visivelmente perdido no dia do desastre. De tal maneira que a sua declaração à imprensa foi, ela própria, desastrosa.
Fez o básico – lamentar as vítimas, ordenar um inquérito, assumir o luto, elogiar todos os meios envolvidos no socorro. Tudo certo. Mas, mesmo naquele contexto, não resistiu ao modo eleitoralista em que vive 24 horas por dia. Colocar-se no centro das atenções: “Estou em contacto com o senhor Presidente da República, com o senhor primeiro-ministro, e com todo o governo” (a sério? Ninguém quer saber). E debitar soundbites como se fosse mais um dia no Tiktok: “Agora é hora de estar aqui a tratar, de estar no terreno”; “Este momento é de ação, fazer, concretizar, ajudar.” É mais forte do que ele. Carlos Moedas abre a boca e saem bocados de propaganda. Até perante 16 mortos e dezenas de feridos. A isto se chama aproveitamento político.
Mas como aquilo não era o Tiktok, começaram a fazer-lhe perguntas. E Moedas, instintivamente, foi recuando. Algumas perguntas não tinham resposta naquele momento. Outras tinham. Quando Moedas foi questionado sobre a segurança dos restantes elevadores e funiculares de Lisboa, tinha de ter pronta a única resposta possível: seriam todos suspensos, para avaliação das suas condições de manutenção. Mas a pressa de aparecer foi tanta, que nem essa resposta básica Moedas foi capaz de preparar. Decidiu e anunciou isso mesmo umas horas mais tarde.
O respaldo do Governo
Quanto a Luís Montenegro, fez o que faz um bom companheiro de partido: levou Moedas para o regaço do Conselho de Ministros, para o proteger com a força institucional do Executivo. Foi solidário, foi cristão, foi bonito. E foi calculado, a um mês de eleições autárquicas. O autarca bem dizia que estava em contacto com o governo todo. O Governo todo acolheu-o numa hora de necessidade política. Mas fez mais do que isso.
Montenegro fez o que era justo: “o profundo agradecimento e reconhecimento a todas as entidades envolvidas no socorro às vítimas”, citando Proteção Civil e bombeiros, “diversas entidades de saúde”, INEM, cinco hospitais envolvidos, aos agentes da PSP, PJ, Polícia Municipal, “entre tantos outros”, cuja “resposta rápida permitiu salvar vidas e por via disso evitar que a tragédia assumisse ainda proporções maiores e mais devastadoras.”
Mas Montenegro foi mais longe: “Esta pronta e coordenada resposta de todas as entidades envolvidas reafirma a capacidade das nossas instituições e, nesta ocasião, a colaboração e coordenação entre vários departamentos, do Ministério da Administração Interna, do Ministério da Saúde, do Ministério da Justiça, do Ministério das Infraestruturas e Habitação e do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social”.
Viram o que Luís Montenegro fez aqui? Pegou no caso concreto de Lisboa, onde, de facto, a resposta dificilmente poderia ser mais rápida e eficaz – também porque falamos do centro da capital, com bombeiros, polícias, INEM e hospitais a muito pouca distância (o Hospital de São José é na colina em frente à do desastre) – e fez uma extrapolação para a ação do Governo. Se os bombeiros, se as políticas, se o INEM, se as urgências deram tão boa resposta em Lisboa, isso prova, diz Montenegro, “a capacidade das nossas instituições”. E citou, não por acaso, alguns dos ministérios que mais têm estado debaixo de fogo, precisamente pela sua incapacidade de prestar com eficácia e eficiência, os serviços que os cidadãos deles esperam.
De Lisboa, o primeiro-ministro extrapolou para o país. Uma extrapolação abusiva. Chama-se a isto aproveitamento político. Foi Montenegro quem pediu, nessa declaração, que não houvesse aproveitamento político desta tragédia. Mas Montenegro e Moedas foram os primeiros a fazê-lo.
“Responsabilidade” à moda de Moedas (parte 2)
E chegamos à responsabilidade política de Carlos Moedas. Que continua a existir, apesar de o presidente da Carris continuar, fielmente, a cumprir o papel de escudo humano (oh homem, demita-se de uma vez por todas!, já bem basta o que basta).
O ladino alcaide de Lisboa, depois de cinco dias a pensar como havia de descalçar esta bota, veio ontem esclarecer que “ninguém se pode demitir disto. É uma cobardia alguém se demitir.”
Como é evidente, a decisão de Moedas surpreendeu um total de zero pessoas. Ao longo de quatro anos, Moedas nunca, mas nunca, assumiu responsabilidade política por qualquer coisa que tenha corrido mal na cidade – fossem as pessoas em situação de sem-abrigos às dezenas na Igreja dos Anjos e por toda a Avenida Almirante Reis e Arroios, fosse o estado miserável dos passeios e da limpeza urbana, fosse o desnorte em relação à ciclovias, fosse o que fosse, a culpa era sempre de outros: do seu antecessor, do Governo da República, fosse quem fosse, que não ele. Pelo contrário, nunca hesitou em apresentar como suas obras e ideias que herdou de outros. Porque havia Moedas de assumir agora a responsabilidade política por uma tragédia em que morreram – morreram!!! – 16 pessoas e muitas mais ficaram feridas?
Segundo Moedas, “a responsabilidade política é minha”. Mas, na sua leitura, a responsabilidade política de ser o acionista de uma empresa cujas ações ou omissões nos trouxeram a este desastre, não tem consequências. Porque “nesta tragédia, não há nenhum erro que possa ser imputado a uma decisão do presidente da Câmara”. Moedas, atabalhoadamente, confunde responsabilidade direta, ou criminal, com responsabilidade política. Para safar a pele, vale tudo.
“Responsabilidade” à moda de Moedas (parte 1)
Acho eu que Moedas se deve demitir? Acho apenas que Moedas deve ser coerente e cumprir a sua palavra. Não se limitar a deitar coisas da boca para fora que, depois, noutras circunstâncias, valem zero. Já muitos citaram estas palavras de Moedas, em 2021 (até eu as citei na antena da CNN, no dia a seguir ao desastre), e continuam a ser a única bitola pela qual a ação de Moedas pode agora ser julgada.
Em 2021, recordo, Fernando Medina estava a braços com o caso dos dados pessoais de organizadores de manifestações políticas que foram comunicados por um serviço da Câmara de Lisboa às embaixadas visadas por essas manifestações. Era um procedimento administrativo habitual, embora gritantemente ilegal. Nunca teve autorização do então presidente da autarquia, que soube desta bizarra atuação ao mesmo tempo que toda a gente. Apesar de estar a leste do que se passava, Moedas, então candidato contra Medina, exigiu a sua demissão com palavras eloquentes.
“Nós na política temos, de uma vez por todas, de ter uma atitude diferente. (…) Isto é um erro técnico, mas com consequências políticas. No passado, muitos políticos, incluindo do PS, quando houve erros técnicos, erros graves, demitiram-se. É bom que Fernando Medina se lembre desses políticos que se demitiram e tomaram as suas responsabilidades políticas” – nem seria preciso explicar mas Moedas invoca, nesta parte, o exemplo de Jorge Coelho no caso de Entre-os-Rios.
O então candidato, num cúmulo de cinismo, lamentou mesmo o caminho que levava a política, e que precisava de ser mudado, com o regresso aos bons valores de responsabilidade política do passado. “Hoje em dia isso já não se vê na política, e é grave. Quando digo que é preciso fazer política de uma maneira diferente, estou a falar deste tipo de casos.”
Conclusão.
Casos em que os serviços administrativos da autarquia cometem um erro sem que daí resultem mortes: presidente da Câmara deve demitir-se. Casos em que erros de uma empresa da Câmara levam morte, caos e destruição a um ícone turístico no coração de Lisboa: presidente da Câmara deve ficar em funções. Faz sentido para Moedas. É a sua coerência, a sua consciência e o seu sentido ético.
Afinal, Jorge Coelho já não é um exemplo a seguir, quando se demitiu na tragédia de Entre os Rios. Afinal, Jorge Coelho foi um cobarde.