Depois de serem forçadas ao silêncio durante várias décadas, mais de uma centena de mulheres sul-coreanas que foram obrigadas a prostituir-se abriram uma acção judicial inédita contra as forças armadas dos Estados Unidos da América (EUA). Acusam a instituição norte-americana de promover o tráfico e o comércio sexuais durante a sua estada no país.
O processo foi anunciado durante uma conferência de imprensa nesta segunda-feira, 8 de Setembro. Nele, as vítimas requerem um pedido de desculpa por parte do exército norte-americano, que consideram ser o “verdadeiro culpado” do seu sofrimento, assim como uma indemnização no valor de dez milhões de wons (cerca de 6140 euros) para cada uma das envolvidas. Alegam que o exército norte-americano, em conjunto com o Governo coreano, participou directamente na gestão de uma rede de prostituição criada especialmente para os soldados americanos presentes na Coreia do Sul, conforme avança o The New York Times.
Desde a Guerra da Coreia, de 1950 a 1953, os Estados Unidos destacaram milhares de soldados para a Coreia do Sul. Em torno das suas bases, criaram-se os chamados kijichon, zonas de prostituição que continham um aglomerado de bares, lojas e bordéis geridos pelo Governo coreano, de forma a atrair os soldados norte-americanos e a convencê-los a gastar dólares no país, numa tentativa desesperada de salvar a economia.
Muitas das mulheres que trabalhavam nestas zonas de prostituição tinham sido vendidas a proxenetas, enquanto outras tinham sido manipuladas com a promessa de oportunidades de trabalho. Existem vários relatos destas vítimas de escravidão sexual que descrevem violações dos direitos humanos por parte das tropas americanas. Porém, estas não receberam o mesmo tratamento que as vítimas do exército japonês durante a Segunda Guerra Mundial: a sociedade coreana desprezou-as e forçou-as a manter-se em silêncio durante décadas, por serem prova viva do lado oculto e perturbador da sua aliança com os Estados Unidos.
“Não me esqueço de ser espancada por soldados americanos – esbofeteada por baixar a cabeça enquanto servia bebidas, por não sorrir, ou sem motivo algum”, disse uma das mulheres, na casa dos 60 anos, à AFP, citada pelo The Independent.
Devido ao desdém de que foram alvo, as vítimas coreanas não tinham sequer direito a processar directamente o exército norte-americano, já que qualquer acção judicial que visasse compensação por parte das tropas dos Estados Unidos teria de ser aprovada pelo governo local. Assim, em 2022, as mulheres decidiram abrir um processo contra o Estado coreano, e ganharam: o Supremo Tribunal da Coreia do Sul ordenou ao Governo que compensasse as 120 signatárias pelo trauma sofrido enquanto “mulheres de conforto” dos soldados dos EUA.
No processo mais recente, o exército norte-americano foi ainda acusado de forçar várias mulheres a receber tratamento para doenças sexualmente transmissíveis, de “forma sistemática e violenta”, de acordo com o The New York Times. As autoridades de ambos os países decidiram que as vítimas teriam de ser testadas duas vezes por semana, para prevenir que os soldados ficassem infectados. As mulheres que testassem positivo eram trancadas em quartos com grades nas janelas, onde recebiam doses elevadas de penicilina. Muitas morreram de choque anafiláctico, causado pela administração do antibiótico.
Os kijichon foram desaparecendo lentamente à medida que a economia sul-coreana se desenvolveu. Contudo, os advogados das mulheres afirmam que algumas das actividades descritas no processo continuaram até 2004.