Dois importantes grupos israelitas de direitos humanos fazem o que nunca fizeram até aqui. E dizem que “nada” os preparou” para esta “constatação”: “Fazemos parte de uma sociedade que comete genocídio”
Pela primeira vez, dois importantes grupos israelitas de direitos humanos acusam Israel de genocídio em Gaza
por Ivana Kottasová e Abeer Salman, CNN
Dois importantes grupos israelitas de direitos humanos acusaram Israel de “cometer genocídio contra os palestinianos em Gaza”, tornando-se as primeiras organizações a fazer tal afirmação.
A B’Tselem afirma num importante relatório divulgado esta segunda-feira que chegou a essa “conclusão inequívoca” após uma “análise da política de Israel na Faixa de Gaza e seus resultados horríveis, juntamente com declarações de políticos e comandantes militares israelitas de alto escalão sobre os objetivos do ataque”.
Um segundo grupo israelita, Médicos pelos Direitos Humanos Israel (MDHI), anunciou que se juntava à B’Tselem para classificar as ações de Israel em Gaza como genocídio. Publicou uma análise jurídica e médica separada, documentando o que chamou “extermínio deliberado e sistemático do sistema de saúde em Gaza”.
O porta-voz do governo israelita, David Mencer, rejeitou o relatório. “Temos liberdade de expressão neste país, mas rejeitamos veementemente esta alegação”, disse o responsável aos jornalistas, acrescentando que Israel permitiu a entrada de ajuda em Gaza.
Israel tem argumentado consistentemente que está a agir de acordo com o direito internacional e que a sua guerra em Gaza, após os ataques mortais do Hamas em 7 de outubro de 2023, é uma ação de autodefesa.
Quando outros grupos não israelitas acusaram anteriormente o país de cometer genocídio ou atos genocidas, o governo israelita reagiu com indignação, rejeitando veementemente as declarações e, muitas vezes, respondendo com alegações de que as acusações se baseavam no antissemitismo.
A B’Tselem afirmou no relatório de 79 páginas que a realidade no terreno em Gaza “não pode ser justificada ou explicada como uma tentativa de desmantelar o regime do Hamas ou as suas capacidades militares”.
Ao anunciar as conclusões do relatório, o diretor executivo da B’Tselem, Yuli Novak, afirmou que “nada nos prepara para a constatação de que fazemos parte de uma sociedade que comete genocídio”. “Este é um momento profundamente doloroso para nós. Mas, como israelitas e palestinianos que vivem aqui e testemunham a realidade todos os dias, temos o dever de dizer a verdade da forma mais clara possível: Israel está a cometer genocídio contra os palestinianos. O nosso genocídio tem contexto”, afirmou Novak.
O grupo afirmou que o ataque de Israel a Gaza inclui assassínios em massa – tanto em ataques diretos como através da criação de condições de vida catastróficas –, destruição em grande escala de infraestruturas, destruição do tecido social, detenções em massa e abuso de detidos – e deslocamento forçado em massa, incluindo tentativas de limpeza étnica.
Acrescentou que as declarações feitas por altos responsáveis israelitas “expressaram intenções genocidas ao longo de todo o conflito”.
A B’Tselem afirma que o relatório basea-se em dados recolhidos ao longo dos últimos 20 meses, incluindo informações sobre “milhares de casos” alegadamente cometidos pelas forças israelitas contra palestinianos em Gaza, na Cisjordânia, em Jerusalém Oriental e em território israelita.
O grupo disse que utilizou as suas próprias informações, bem como dados externos recolhidos por organizações cuidadosamente avaliadas.
A MDHI acrescentou que as provas que recolheu indicavam um “desmantelamento deliberado e sistemático do sistema de saúde na Faixa de Gaza e de outros sistemas vitais para a sobrevivência da população”.
“Não se trata de danos colaterais da guerra, mas de uma política deliberada que visa prejudicar a população palestiniana como um todo”, afirma a MDHI num comunicado.
Mas, embora a B’Tselem afirme que o governo israelita é responsável pela situação em Gaza, também acusa a comunidade internacional de permitir o genocídio.
“Muitos líderes estatais, particularmente na Europa e nos EUA, não só se abstiveram de tomar medidas eficazes para impedir o genocídio, como também o permitiram — através de declarações afirmando o ‘direito de autodefesa’ de Israel ou apoio ativo, incluindo o envio de armas e munições — que continuou mesmo depois de o Tribunal Internacional de Justiça ter decidido que havia ‘risco plausível de que as ações de Israel constituíssem atos genocidas'”, afirma.
O grupo afirmou que o sentimento de medo, raiva e desejo de vingança que muitos israelitas sentiram após os ataques terroristas de 7 de outubro serviu como “terreno fértil para a incitação contra os palestinianos em geral e os habitantes de Gaza em particular”.
O Hamas e os seus aliados mataram 1200 pessoas, incluindo crianças, e raptaram outras 251 para Gaza durante o ataque — o pior ataque terrorista contra Israel desde a fundação do país.
O relatório da B’Tselem surge num momento em que aumenta a pressão sobre Israel devido à situação catastrófica em Gaza. Imagens de crianças a morrerem de desnutrição aguda provocaram indignação global, com o Reino Unido, a França e a Alemanha a afirmarem na semana passada que a crise era “provocada pelo homem e evitável”.
Ao mesmo tempo, o governo do primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, está sob pressão de todos os lados internamente – com protestos exigindo o fim da guerra e a libertação de todos os reféns a ganharem força e frequência e membros da extrema-direita da sua coligação a ameaçarem derrubar o governo se ele acabar com o conflito.
Esta segunda-feira, os presidentes de cinco das principais universidades de Israel publicaram uma carta aberta a Netanyahu, manifestando preocupação com a crise em Gaza.
“Juntamente com uma parte crescente da população israelita, observamos com choque as cenas angustiantes que surgem diariamente de Gaza, onde a fome e as doenças continuam a ceifar as vidas dos mais vulneráveis”, afirmam os líderes universitários. Acrescentam que estavam “chocados” com as declarações de alguns políticos que “defendiam a destruição intencional de Gaza e a deslocação forçada da sua população civil”.
Primeiro grupo israelita
Embora a B’Tselem seja a primeira organização israelita a acusar o governo de genocídio, vários grupos, organizações e governos internacionais chegaram a conclusões iguais ou semelhantes no passado.
As acusações sempre suscitaram reações, dada a sua gravidade e a sensibilidade em torno do uso da palavra genocídio, que é definida pela Convenção das Nações Unidas para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio como “atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”.
O Comité Especial das Nações Unidas afirmou em novembro passado que a conduta de Israel na guerra em Gaza era “consistente com as características do genocídio”, incluindo baixas civis em massa e o uso da fome como arma.
A Human Rights Watch acusou Israel de cometer “atos de genocídio” contra os palestinianos em Gaza, privando-os de abastecimento adequado de água em dezembro passado, enquanto a Amnistia Internacional afirmou, na mesma época, que havia “provas suficientes” para concluir que estava a ocorrer um genocídio no território.
O governo da África do Sul entrou com uma ação judicial contra Israel no Tribunal Internacional de Justiça em dezembro de 2023, acusando o país de cometer genocídio em Gaza. A Irlanda juntou-se ao caso da África do Sul no início deste ano.
O tribunal superior da ONU ordenou que Israel tomasse “todas as medidas” para impedir um genocídio em Gaza numa decisão sobre o pedido de medidas de emergência da África do Sul, que funcionam como uma ordem de restrição enquanto o tribunal analisa todos os méritos do caso de genocídio, uma medida que pode levar anos.
Várias personalidades israelitas proeminentes também fizeram a mesma acusação, incluindo o especialista em genocídio Omer Bartov, que escreveu um artigo de opinião no New York Times dizendo que a sua “conclusão inevitável é que Israel está a cometer genocídio contra o povo palestiniano”.
O historiador israelita Lee Mordechai fez uma observação semelhante no início deste mês, compilando uma base de dados com o que ele disse serem exemplos de crimes de guerra cometidos por Israel em Gaza e afirmando que as provas que viu “indicam que um dos objetivos muito prováveis de Israel” era “a limpeza étnica da Faixa de Gaza”.