De um lado, Tina Romero, filha de George A. Romero, apropria-se da herança familiar, ao co-escrever e dirigir Queens of the Dead (sábado, 00h00), reinvenção em tom sério-cómico do apocalipse zombie que o pai definiu com o seminal A Noite dos Mortos Vivos.
Do outro, Julie Pacino, filha de Al Pacino, prefere ficar por trás da câmara, escrevendo e dirigindo I Live Here Now (domingo, 16h05), exercício de surrealismo paranóico feminista que revisita as “fugas psicogénicas” de David Lynch. Em nenhum dos casos estamos perante grandes filmes, mas, tratando-se das primeiras longas das suas autoras, sente-se já nelas suficiente personalidade para as demarcar dos ilustres progenitores.
Queens of the Dead é um caso bastante curioso, aliás, porque Tina Romero não se quis minimamente afastar da obra do pai. Em vez disso, trata de actualizar a lógica de A Noite dos Mortos Vivos de acordo com as novas coordenadas contemporâneas: o refúgio dos sobreviventes é aqui um clube nocturno onde um espectáculo de drag queens é interrompido antes mesmo de começar; e os “defensores” são um grupo heteróclito de gente LGBTQI+ que inclui a organizadora da festa (Katy O’Brian, de Amor em Sangue), o seu cunhado canalizador, três travestis com vontade de se esgatanharem umas às outras, e uma advogada lésbica bruta como as casas (a comediante Margaret Cho).
Os zombies, acreditem, são o menor dos problemas nesta comédia queer que Tina Romero escreveu com a comediante Erin Judge, e que quase parece uma versão de A Gaiola das Malucas com mortos-vivos e sangue. Aliás, os zombies são simples pretexto para a filha erguer um espelho distorcido à sociedade americana, cheia de piscadelas de olho aos filmes do pai (desde o slogan publicitário de Zombie – a Maldição dos Mortos Vivos usado nos diálogos a referências de passagem à Pittsburgh nativa, mais a presença do mestre das maquilhagens prostéticas Tom Savini no papel do presidente da câmara).
Claro que há sangue e vísceras e mordidelas e mortes heróicas, mas há também zombies ao telemóvel a fazerem like e repost, e se calhar os zombies já andam por aí e somos nós. Tina Romero tem consciência que a roda não se reinventa, mas pode dar-lhe um novo look sem a trair e é a isso que se dedica, com assinalável graça.
Já Julie Pacino prefere seguir nas pegadas de David Lynch, sem hesitar em ir buscar a presença tutelar de Sheryl Lee (a imortal Laura Palmer, aqui no papel de uma mãe tirana), para uma viagem ao interior de uma aspirante a actriz cuja vida parece ruir em 24 horas. No exacto momento em que uma agente de casting lhe acena com o papel que a pode lançar, Rose (Lucy Fry) descobre-se grávida, apesar de uma intervenção cirúrgica quando era criança a ter tornado infértil. Refugiando-se num bizarro hotel nas colinas californianas em chamas, Rose perde-se num labirinto indecifrável onde o que é real e o que está na sua cabeça são indissociáveis.
Lynch é a referência máxima de I Live Here Now, mas não é a única: nas paletas de cores dos cenários e da fotografia, é inevitável pensar no psicadelismo difuso e néon do Suspiria de Dario Argento. E no constante ir e vir entre realidade e ilusão, a americana parece-nos ter ido beber muito às fantasmagorias surreais do britânico Peter Strickland (com o qual, aliás, partilha o montador Mátyás Fekete). É um filme que se define, também, pela sua propositada recusa das gavetas, com um pé no fantástico e outro no cinema de autor — aliás, é sintomático que tenha estado, quase em simultâneo, no festival de género canadiano Fantasia, em Montréal, e fora de concurso em Locarno.
Mas onde ele está por inteiro é na vontade de lançar um olhar assumida e resolutamente feminino sobre a impotência perante a rigidez social e o papel subserviente que as mulheres ainda têm de desempenhar em muitas situações. Pode-se dizer que estão aqui dois filmes que não sofrem de complexos de Édipo: nem Tina Romero nem Julie Pacino sentiram a necessidade de matar os pais, os seus filmes ganham com isso.