Em “Cointeligência”, o americano Ethan Mollick evita o que tantos livros sobre inteligência artificial fazem: olhar demasiadamente para o futuro, elaborando cenários utópicos —ou catastrofistas.
O professor de criatividade e negócios da Universidade de Wharton prefere encarar o presente, focando a potencial utilidade da IA, definida logo como uma “tecnologia de propósito geral” —como o vapor ou a internet.
Presente em várias listas de melhores livros sobre o assunto desde que foi lançado nos Estados Unidos, há cerca de um ano, ele tem uma linguagem bastante acessível, sem ser superficial.
Apesar de ser muito bem embasado em estudos científicos, revisões históricas e definição de conceitos, o livro funciona menos como uma introdução ao assunto e mais como uma espécie de manual para quem quer participar ativamente da revolução. Logo no princípio ele define quatro regras práticas para o bom uso da tecnologia:
1) “Sempre convidar a IA para participar”: experimentá-la em tudo que for legal e ético, para entender onde ajuda —e onde ameaça seu trabalho; 2) ser o humano do processo: usar a IA como ferramenta, não muleta; delegar sem abdicar de julgamento; 3) tratar a IA como uma “pessoa” alienígena —e diga que “pessoa” ela é (defina persona, contexto, critérios), porque isso melhora a colaboração; 4) assuma que esta é a pior IA que você usará: os sistemas vão melhorar, então construa processos que aprendam rápido com eles.
Esses mandamentos são embasados não apenas em sua própria experiência —Mollick fez o ChatGPT assumir diferentes “personas” para revisar e criticar seu próprio livro—, mas em estudos que ele mesmo vem conduzindo sobre o impacto da IA na produtividade das empresas.
Tudo é amplamente ilustrado com exemplos práticos, acessíveis e úteis para todo mundo que trabalha na frente do computador a maior parte do dia.
Além de dicas para pessoas físicas, Mollick tenta explicar por que os prometidos ganhos incríveis de produtividade ainda não apareceram nos balanços financeiros. Ele diz que “inovar é caro para empresas e barato para indivíduos”: um profissional pode testar e iterar sozinho hoje; já transformar isso em produto ou processo exige tempo, equipe e risco.
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Enquanto isso, o autor percebe a “automação secreta” de tarefas: gente usando IA às escondidas, por medo de punição ou de “treinar o próprio substituto”.
Para resolver isso, a receita para líderes de organizações seria reduzir o medo, incentivar explicitamente quem descobre bons usos (ele sugere prêmios robustos em dinheiro, por exemplo) e ampliar o acesso com diretrizes claras.
Se alguns conselhos podem parecer apenas aplicação do senso comum, o livro brilha ao criar analogias para explicar as formas emergentes de trabalhar com IA. Por exemplo na diferenciação entre centauros e ciborgues. No modo centauro, a pessoa divide o trabalho: deixa à IA o que ela faz melhor (por exemplo, sumarizar estudos ou papers) e fica com a interpretação e as decisões.
No modo ciborgue, há integração contínua —a pessoa e a IA coescrevem, coanalisam, cocriam, com ciclos curtos de edição. A habilidade-chave para os próximos anos é escolher quando assumir cada papel.
Um ano após sua publicação original —uma eternidade no assunto que avança a cada semana—, “Cointeligência” continua sendo um manual bastante útil. Por sorte não promete certezas, preferindo oferecer heurísticas e práticas testáveis. É o tipo de livro que melhora quando lido com um ChatGPT do lado.