Uma nova investigação liderada pela ETH Zurich estabeleceu, pela primeira vez, ligações causais directas e quantificadas entre as emissões dos maiores produtores de combustíveis fósseis e cimento, referidas no estudo como “​carbon majors”, e o agravamento de mais de 200 ondas de calor globais nas últimas duas décadas.

O estudo, publicado na quarta-feira na revista Nature, marca um avanço significativo na compreensão de quem é responsável pelos extremos climáticos — e poderá ter repercussões em matéria de litigância climática.

Os investigadores trabalharam em várias etapas: identificar o contributo exacto dos 160 maiores emissores do mundo para as alterações climáticas; analisar as 213 ondas de calor mais extremas das últimas décadas para identificar a influência das alterações climáticas nas mesmas; e, por fim, identificar em que medida cada uma das empresas terá sido responsável, com as suas emissões, para tornar mais graves aqueles fenómenos de calor extremo.

Impacto das alterações climáticas

A equipa de investigação, liderada pela ETH Zurich, analisou 213 ondas de calor que ocorreram por todo o mundo entre 2000 e 2023. O estudo incluiu fenómenos classificados como “grandes desastres” que resultaram em mortes, perdas económicas ou pedidos de ajuda internacional, de acordo com a base de dados EM-DAT. Os autores notam que a África e a América do Sul estão sub-representadas devido à falta de dados, já que a notificação de ondas de calor é “altamente desigual”.

A investigação utilizou uma análise de atribuição de eventos extremos para determinar como as alterações climáticas causadas pela acção humana afectaram a probabilidade e a intensidade de cada onda de calor, explica Yann Quilcaille, primeiro autor do estudo, citado num comunicado da ETH Zurich. Para isso, os cientistas compararam os dados reais durante a ocorrência das ondas de calor com um cenário que representa o clima entre 1850-1900, um período anterior à influência humana no clima.

Os resultados são inequívocos: “As alterações climáticas tornaram cada uma destas ondas de calor mais provável e mais intensa, e a situação tem vindo a piorar ao longo do tempo”, afirma Yann Quilcaille.

As ondas de calor registadas entre 2000 e 2009 foram, em média, 20 vezes mais prováveis devido às alterações climáticas, enquanto as registadas entre 2010 e 2019 foram aproximadamente 200 vezes mais prováveis. Em termos de intensidade, as ondas de calor de 2000-09 foram, em média, 1,4°C mais quentes, e as de 2010-19 foram 1,7°C mais quentes devido ao aquecimento global. O estudo revelou ainda que 55 das ondas de calor teriam sido “praticamente impossíveis” sem a influência humana.

“Carbon majors”

O foco da investigação incidiu em seguida nas emissões facilitadas pelos 180 maiores produtores de combustíveis fósseis e cimento do mundo — os chamados “carbon majors”. Segundo o estudo, estas empresas são responsáveis por 60% das emissões totais acumuladas de CO2 da humanidade entre 1850 e 2023.

Os autores continuaram a aplicar modelos para calcular a influência destes grandes produtores em fenómenos específicos. “Cerca de metade da mudança na temperatura média global da superfície em 2023 pode ser explicada pelas emissões dos carbon majors”, explica Quilcaille, citado em comunicado.

“Para cada onda de calor, calculámos como as alterações climáticas afectaram a sua intensidade e probabilidade”, descreve o investigador. “Identificámos tanto o impacto de cada empresa individualmente quanto os efeitos combinados de outros factores humanos e naturais.”

Outro dos autores do estudo, Richard Heede, membro do Climate Accountability Institute, afirmou à CNN que estudos futuros poderiam analisar outros tipos de fenómenos meteorológicos extremos, como inundações e incêndios florestais. A investigação, explica, “fornece as primeiras pistas sobre o impacto de empresas individuais de combustíveis fósseis ao longo da sua cadeia de valor, desde a extracção, processamento, distribuição e combustão final de combustíveis de carbono, algo que tem sido exigido pelos consumidores por todo o mundo”.

De quem é a culpa?

Entre as 180 empresas analisadas, há 14 que se destacam, contribuindo para as alterações climáticas tanto quanto as restantes 166 organizações juntas. As contribuições individuais de cada uma destas 14 maiores empresas são suficientes para causar mais de 50 ondas de calor que seriam quase impossíveis sem as alterações climáticas.

De acordo com o estudo, entre os maiores produtores de combustíveis fósseis estão entidades estatais ou empresas privadas da antiga União Soviética, da República Popular da China (em particular devido à produção de carvão) e exportadores de petróleo e/ou gás como a Saudi Aramco, Gazprom e ExxonMobil.

A investigação conseguiu quantificar o impacto de empresas individuais. Por exemplo, as emissões ligadas à Saudi Aramco e à ExxonMobil tornaram 51 ondas de calor pelo menos dez mil vezes mais prováveis. Em média, as emissões da Saudi Aramco tornaram as 213 ondas de calor 0,04°C mais quentes.

Mesmo, também, os “produtores de carbono de menor dimensão desempenham um papel significativo”, explica Quilcaille: as emissões do menor dos 180 gigantes de carbono, a produtora russa de carvão Elgaugol, “ainda são suficientes para causar 16 ondas de calor”, de acordo com os cálculos da equipa.

Justiça climática?

“Ser capaz de rastrear a contribuição destes emissores únicos e quantificar a sua contribuição poderia ser muito útil para estabelecer responsabilidades potenciais”, salienta Sonia Seneviratne, que liderou a equipa de investigação, citada pelo Guardian. Este estudo, afirmou Richard Heede ao site da CNN, poderá ajudar a “resolver as questões de quem é o culpado por contribuir significativamente para uma determinada onda de calor”, por exemplo, contribuindo para “lançar as bases de quem é o culpado e como partilhar a responsabilidade”.

A investigadora de direito internacional Corina Heri, co-autora do estudo, observa que os tribunais têm demonstrado mais inclinação para responsabilizar estes grandes emissores, mas têm pedido mais certeza científica. Este estudo, explicou à CNN, “ajuda a preencher parte dessa lacuna”.

A porta-voz da campanha Make Polluters Pay (Façam os poluidores pagar), Cassidy DiPaola, é ainda mais contundente: “Agora podemos apontar para ondas de calor específicas e dizer: ‘A Saudi Aramco fez isto. A ExxonMobil fez aquilo.’ As suas emissões, por si só, estão a desencadear ondas de calor que não teriam acontecido de outra forma.” Em declarações ao Guardian, a especialista em políticas climáticas nota que “estamos a falar de pessoas reais que morreram, culturas reais que falharam e comunidades reais que sofreram, tudo por causa de decisões tomadas em conselhos de administração de empresas”.

“Aqui está a prova que os tribunais esperavam”, celebra. “A conta está a chegar, e é hora de estes poluidores pagarem pelos danos que causaram.”