Em 12 de setembro de 2015, no evento Jornadas de Yarmouk, na ocupação Leila Khaled, no bairro paulistano da Liberdade, a editora Autonomia Literária realizava seu primeiro lançamento: A origem do Estado Islâmico: o fracasso da “guerra ao terror” e a ascensão jihadista do escritor anglo-irlandês Patrick Cockburn – um livro emblemático para estrear em meio a refugiados palestinos vindos da Síria que encontravam seu segundo refúgio no Brasil.

A multidão que lotava o velho prédio onde ainda fica a ocupação compensava o frio insuportável daquele dia. A editora já tinha sido gestada meses antes, depois de ter sido imaginada no final de 2014. E ali vinha ao mundo o primeiro de seus muitos filhos, justo numa ocasião na qual Palestina, guerra, refúgio e a velha questão da moradia se encontravam num só lugar.

(Fotos de fotos de Alexandre Maciel & Samara Takashiro)(Fotos de fotos de Alexandre Maciel & Samara Takashiro)

O Brasil vivia às voltas com a ameaça de impeachment de sua presidenta reeleita, cuja vitória era negada por massas cada vez mais ferozes, violentas e reacionárias – a primavera da democracia brasileira parecia encontrar, também, seu inverno, depois de anos de sonhos e ilusões, todas elas tão doces quanto ingênuas. Ali era a nossa encruzilhada e nosso nascimento. 

(Fotos de fotos de Alexandre Maciel & Samara Takashiro)(Fotos de fotos de Alexandre Maciel & Samara Takashiro)

Começar um projeto que pretendia trazer algo novo para o ecossistema editorial brasileiro, justamente num momento de refluxo da cultura, da política e da vida, só podia ser aquele típico ato de irresponsabilidade que nós temos antes dos 30 anos – poucos anos antes disso, nós três, Cauê Seigner Ameni, Hugo Albuquerque e Manuela Beloni, estávamos nos corredores da PUC de São Paulo, militando no movimento estudantil, em um bom encontro de trajetórias tão diferentes quanto peculiares.

Pelos corredores da faculdade e nas conversas do antigo Acervo Antropofágico, no Centro Acadêmico de Ciências Sociais, que reunia gente de todos os cursos, a Autonomia nasceu de um tempo em que se lutava para avançar mais ainda do que estava posto, depois dos anos da tardia tentativa de bem-estar social no Brasil – atravessada por uma volta da ocupação das ruas e de grande manifestações como as de 2013.

Era tempo de pensar em trazer títulos de toda ordem, discutir histórias não contadas, questionar como se pensava a economia – enquanto o establishment pregava austeridade –, o que seria bem-viver, como ir além de Marx – ou encontrá-lo, selvagem, em meio aos anticapitalismo dos nossos indígenas como pensado por Jean Tible – , pensar a luta dos sem-terra e sem-teto e tantas outras questões que assolam a América Latina – e mal sabíamos o que nos esperava dali em diante, com a reaparição do fascismo.

Uma década de luta

Os últimos dez anos passaram de forma espetacular, tão veloz e, ao mesmo tempo, como se aquele primeiro lançamento já fizesse parte de um passado muito mais distante e remoto – nada estranho para estes tempos de aceleração, onde a promessa de futuro faliu conosco dentro, ao mesmo tempo em que recusamos essa distopia porque é possível imaginar e criar tantos mundos além deste mundo, como nos mostram as revoluções e as experiências indígenas radicais.

Nesse período, do nome da editora inspirado, por óbvio, na Autonomia Operária de Toni Negri, que tantas vezes recepcionamos, até chegar a Mark Fisher, sua crítica ao realismo capitalismo e sua assombrologia, passando pela edição brasileira da Jacobin ou o encontro de Edgar Snow com Mao Zedong nas montanhas de Yan’an, marcam uma série de imagens e publicações iconoclastas que buscaram ir além do conformismo com o neoliberalismo tardio.

(Fotos de fotos de Alexandre Maciel & Samara Takashiro)(Fotos de fotos de Alexandre Maciel & Samara Takashiro)

Nós mudamos, o Brasil e o mundo mudaram nessa década em que atravessamos e fomos atravessados pelo golpe de 2016, o desgoverno de Temer, a ascensão e queda de Bolsonaro – com nada menos do que a pandemia no meio –, a reconquista a duras penas e tão tênue de uma trajetória democrática – a prisão, soltura e nova eleição de Lula, cuja história de vida ainda é uma epopeia ainda em aberto.

Situados no coração de São Paulo, no Bixiga – muito além de um bairro italiano, mas também negro, nordestino e de tantas gentes e tribos – onde já teve duas casas, seja pelo ônibus-livraria amarelo ou navegando pelos canais e praias de Paraty nas Festa Literária Pirata das Editoras Independentes (Flipei), tantas vezes sob a alça de mira da extrema direita, seus rojões ou a censura da prefeitura da maior cidade das Américas.

Seria basicamente impossível agradecer individualmente a infinidade de autores, editoras parceiras, fundações, apoiadores, entusiastas, amigos, colaboradores, freelas e da legião de leitores que nos seguem por acreditar que o mundo pode – e merece – ser mais do que só isso. Mas é satisfatório e surpreendente que tenhamos chegado até aqui depois de tudo isso, embora tenhamos a certeza que valeu a pena.

(Fotos de fotos de Alexandre Maciel & Samara Takashiro)(Fotos de fotos de Alexandre Maciel & Samara Takashiro)

Não recuamos, não nos calamos e arcamos com as dores e alegrias de ter fugido ao ordinário e previsível. Servimos, muito além de nós mesmos, como um ponto de encontro, uma rizoma que permitiu muitas iniciativas comuns e uma miríade de encontros e criações visando transformar o mundo e emancipa os trabalhadores. O que será de nós e o que será do mundo? Não temos como saber, mas enquanto for, resistiremos – autônomos.

Cierre