Primeiro contrataram em excesso durante a pandemia, gerando, depois, uma vaga sem precedentes de despedimentos no mercado tecnológico que começou no fim de 2022. Três anos depois, voltam os cortes de postos de trabalho nas tecnológicas, agora com a justificação de ajustes nas equipas devido à IA (inteligência artificial).
“Preciso de menos cabeças”, resumiu Marc Benioff, CEO da tecnológica norte-americana Salesforce, que desenvolve software de gestão. Em entrevista ao podcast The Logan Bartlett Show, publicado no fim de agosto, o executivo apresentou números redondos de redução devido ao impacto da IA. “Consegui reequilibrar a contagem total na área de apoio ao cliente”, explicou. “Foi uma redução de nove mil para cinco mil pessoas, simplesmente porque preciso de menos cabeças.”
“Se estivéssemos a ter esta conversa há um ano e ligassem para a Salesforce, haveria 9 mil pessoas capazes de interagir globalmente sobre o serviço cloud e estariam a gerir, criar, ler, atualizar e a apagar dados.” Atualmente, essas interações são feitas de forma diferente, explicou Benioff: “50% com agentes [de IA], 50% com humanos”.
Não são só as funções de apoio ao cliente que estão a ser automatizadas na Salesforce. Na conferência telefónica com analistas após a apresentação de resultados trimestrais, Marc Benioff detalhou que o recurso à IA também estava a transformar a área de vendas. “(….) Das pessoas que contactaram a Salesforce nos últimos 26 anos, entre 20 e 100 milhões não receberam uma chamada de volta — simplesmente porque não tínhamos pessoas suficientes. Agora, com os nossos agentes de vendas toda a gente está a receber uma chamada. É uma mudança enorme”, disse o CEO.
Foi uma mudança de tom grande tendo em conta as declarações feitas há alguns meses. À Fortune, Benioff dizia em julho que não esperava que a IA levasse a um desemprego em massa e desvalorizava as “narrativas assustadoras” de alguns executivos. “(…) Falo com os CEO e pergunto que IA estão a usar para estes grandes despedimentos? Acho que a IA melhora as pessoas, mas não acho que as irá necessariamente substituir”, declarava. Porém, na altura, Benioff já assumia que estava “constantemente a mudar as pessoas de sítio e a mudar a empresa”.
A Salesforce está longe de ser a única a anunciar cortes. A Microsoft, que só este ano deverá investir 80 mil milhões de dólares em IA, confirmou que vai eliminar 9 mil postos de trabalho, o equivalente a 4% dos seus 228 mil funcionários. “Continuamos a implementar as mudanças necessárias para melhor posicionar a empresa para o sucesso num mercado dinâmico”, declarou um porta-voz da empresa. Antes disso, em janeiro, já tinha confirmado que iria dispensar 6 mil funcionários. Em simultâneo ao anúncio dos cortes, o CEO da Microsoft, Satya Nadella, revelou em abril que a IA já responde por “até 30% do código” da Microsoft.
Meta desafia ChatGPT e Gemini ao dar uma app independente ao assistente Meta AI
A Crowdstrike, que ganhou mediatismo pelo incidente que deixou inutilizáveis milhões de PC no verão de 2024, também está a arrumar a casa por causa da IA. Em maio deste ano, a tecnológica especializada em cibersegurança anunciou que iria eliminar 5% de postos de trabalho, o equivalente a 500 empregos. “Estamos a realinhar parte do nosso negócio para continuar a escalar com foco e disciplina”, afirmou o CEO George Kurtz numa comunicação ao mercado. “Operamos num mercado e num ponto de inflexão da tecnologia, com a IA a alterar todas as indústrias, a acelerar as ameaças e a fazer evoluir as necessidades dos clientes”, explicou. “Os investimentos em IA estão a acelerar a execução e a eficiência da empresa”.
“A IA sempre foi fundamental para a forma como operamos. Reduz a nossa curva de contratação e ajuda-nos a ir da ideia ao produto mais depressa”, justificou Kurtz. “Agiliza a passagem ao mercado, melhora os resultados dos clientes e impulsiona eficiências tanto na área de front como backoffice [área de contacto direto e visível para o cliente e área interna, respetivamente]. “A IA é uma força multiplicadora no negócio.”
A estes exemplos contam-se ainda os casos de tecnológicas como a Oracle, que está a fazer cortes nos EUA, ou ainda a Autodesk, que em janeiro anunciou a dispensa de 1.350 trabalhadores, o equivalente a 9% da força de trabalho da empresa de software de design. Mais uma vez, foi usada como justificação uma reorganização para “acelerar os investimentos em IA, plataformas e em cloud”.
“Estes casos ilustram bem como a adoção da inteligência artificial está a transformar a estrutura das empresas tecnológicas”, considera ao Observador Paulo Rosa, economista sénior do Banco Carregosa. Esta adoção está a levar à redução em “determinadas funções, em especial nas áreas de suporte, atendimento e processamento de dados, ao mesmo tempo que pressiona a requalificação de trabalhadores para funções mais ligadas ao desenvolvimento e gestão destas novas ferramentas.”
Os avisos de Dario Amodei, da Anthropic, sobre um “banho de sangue” para os empregos de escritório
↓ Mostrar
↑ Esconder
O impacto da IA no mercado de trabalho é uma questão frequente nas discussões sobre IA. Só que quando os avisos vêm dos executivos de empresas no pelotão da frente do desenvolvimento da IA, o mercado presta outro tipo de atenção. Dario Amodei, cofundador e CEO da Anthropic, afirmou em entrevistas que esta tecnologia pode levar ao fim de muitos empregos. Amodei, que foi vice-presidente de investigação da OpenAI, deu uma entrevista ao site Axios em que sublinhou que as empresas têm de parar de “adoçar” o que aí vem. Vaticinou que a IA poderá “eliminar empregos em massa em áreas como tecnologia, finanças, direito, consultoria e outra profissões de colarinho branco, especialmente em funções de início de carreira”.
Já o CEO da Nvidia, Jensen Huang, pôs alguma água na fervura. Questionado pela CNN internacional sobre as declarações de Amodei, respondeu que “se o mundo ficar sem ideias, então os ganhos de produtividade vão traduzir-se em perda de emprego”. “A questão fundamental é se temos mais ideias na sociedade? E se tivermos, vamos ser mais produtivos, vamos ser capazes de crescer.”
“Não restam dúvidas de que a IA é um motor de alavancagem organizacional”, realça ao Observador Pedro Nunes, senior manager da Michael Page. “No entanto, dentro das próprias empresas, coexistem diferentes visões sobre o seu impacto.” Enquanto “muitos executivos de topo acreditam que o investimento em IA se traduzirá em ganhos de produtividade e, consequentemente, reduções de custos com pessoal”, há trabalhadores que olham para a IA como “um apoio que aumenta a produtividade individual e liberta tempo para tarefas mais complexas, permitindo maior especialização”.
Pedro Nunes identifica já a possível “redução de funções não especializadas”. “As profissões baseadas sobretudo na assimilação e tratamento de informação, sem forte componente criativa ou gerativa, estão particularmente expostas ao risco de substituição a curto prazo”, reconhece. “Funções como analista de preços, centrada apenas na análise de variáveis, podem estar em risco.”
Aliás, esta é uma avaliação há muito colocada em estudos sobre o mercado laboral. “Trabalho em tecnologia há mais de dez anos e esta questão da IA [substituir empregos] não é nova”, assume ao Observador João Salvador Oliveira, responsável pela área de soluções de talento digital da Randstad Portugal. “Acho que é nova a dimensão em que o tema está a ser falado e como está a ser implementado no mercado, não só internacional, como também no mercado português.”
Mas afasta cenários catastrofistas. “Nas áreas tecnológicas, a IA vem, de facto, substituir algumas funções, mas vem criar muitas outras. Entre o dever e o haver, a tecnologia sai a ganhar no sentido em que vão ser criados mais postos de trabalho.”
“Aquilo que as empresas estão a anunciar no imediato é uma otimização pela utilização de IA, o que faz com que sejam precisas menos pessoas para a mesma tarefa”, diz João Salvador Oliveira. “Porém, o que vai acontecer é que essas mesmas empresas vão contratar pessoas com competências que até hoje não existiam ou com experiências e conhecimentos na área da IA.”
O diretor da área de talento tecnológico da Randstad Portugal dá alguns exemplos de profissões que deverão ver a procura crescer. “Tudo o que tenha a ver com cientistas de dados, analistas de dados ligados à IA, cibersegurança, engenharia de prompts, ou seja, engenheiros que sabem ligar muito bem o ChatGPT ou o Gemini às necessidades do utilizador.”