Decidi rever Olive Kitteridge, a minissérie de quatro episódios, baseada no romance de Elizabeth Strout. Quando a vi, há uns anos, apenas me debati com a diversidade de sentimentos que a personagem principal, a austera professora de matemática, desencadeou em mim. Este ‘apenas’ é muito; Olive é uma mulher sagaz, seca, com um humor negro que a alimenta e a consome. O humor corrosivo pode ser autofágico, mas quem o pratica também não lhe resiste.
Olive é de uma complexidade que nos obriga a várias leituras. Em algum momento todos nos encontramos com ela, mas a maior parte do tempo andamos a perguntar-lhe “porquê?”. “Porquê” é a pergunta inconsciente mais repetida ao longo das nossas vidas. Até quando não é dita ou escrita. Porquê a guerra? Porquê a violência? Porquê os homens? Porquê a morte? E, num desespero, porquê nascer?
Não é sobre Olive, ou Henry, o marido, os atores Frances McDormand e Richard Jenkins, de que vos queria falar. A estranha dinâmica dos dois também permite muitas leituras. Já agora, analisando superficialmente a relação do casal diríamos que Olive, a dominadora e castigadora mulher que castra Henry, detém nela o poder da relação. Mas a abnegação de Henry pode muito bem ser a chave deste casamento. É perigoso dizer isto, quando tantos vivem amordaçados, mas é diferente quando se escolhe relativizar e amar o outro acima de muitas coisas. Secundária em Olive Kitteridge, mas protagonista desta crónica, é Denise, a miúda doce que vai parar à farmácia de Henry. É nela que ainda penso agora. Denise, apesar da sucessão de tragédias na vida precoce, é uma miúda terna e doce, com uma visão ingénua sobre o mundo. Talvez as coisas boas ainda lhe possam acontecer – pensará o leitor e espectador. Um dia, Denise acaba casada com o ajudante da farmácia. As pessoas, independentemente do seu meio ou condição, deixam que o amor as encontre em vez de o procurarem. A pressão social, muitas vezes, ganha à paixão. É assim que uma vida depois alguns dirão: “deixei que acontecesse. Não me apaixonei”. O amor pode ser como os sapatos que escolhemos: há pares que nos ficam mesmo bem, e que potenciam o que já somos, e outros que são apenas confortáveis. Que cada um escolha o seu modelo.
Não posso perder Denise, já que foi ela que me trouxe aqui, através de Olive Kitteridge. Denise acaba casada com o abúlico rapaz da farmácia, por falta de melhor escolha. Anos mais tarde, o casal improvável visita Olive e Henry e os anfitriões, como o espectador, ficam perplexos com o que ali se passou: o ajudante da farmácia é agora um idiota galvanizado que ganha poder ao destratar publicamente a doce Denise, que perdeu todo o seu brilho, até mesmo quando fala dos filhos. Denise não é a mesma. Deixou-se apagar pela escolha fácil, que se desenhou numa hora de vulnerabilidade. Não é amor a relação que nos embacia em vez de nos fazer vibrantes. O amor tem de ser alegria e cumplicidade, mesmo que a vida nos reserve partidas infinitas. Quando alguém teima em apagar o nosso brilho natural não é amor o que estamos a viver.
Em poucos minutos, numa personagem ficcional e secundária, vi retratada a vida de muitas pessoas: o lugar à resignação e ao desconforto permanentes. Uma tentativa de existirmos mas na sombra. O amor pode ser um descuido que nos rouba a identidade para sempre.
Ali atrás, falei da dinâmica de Olive e Henry, acautelando a abnegação de Henry. A relação deles, mesmo que não tivesse chama e Olive teimasse, por vezes, em apouca-lo, vivia de uma estranha cumplicidade tecida no olhar. O amor pode estar escrito nesse olhar, que nunca é de medo mas de admiração e orgulho. Henry achava graça à ironia tortuosa de Olive e ela, provavelmente, não percebia como alguém podia ser tão bondoso como ele. Há um momento em que Olive está a tratar das flores, ia dizer torturar – mas elas florescem bonitas -, e Henry chega a casa e diz a Olive: “não me vais deixar, pois não?”
São múltiplas as dinâmicas do amor e nem sempre as compreendemos bem, mas o amor nunca é medo ou sombra. Um deslize pouco calculado e alguém nos fica com a alegria.
O coração ainda bate.
*Olive Kitteridge é uma minissérie que pode ser vista na plataforma Max