Por todo o território russo, existem mais de 200 centros destinados a doutrinar crianças ucranianas, fornecendo ainda formação militar, de acordo com um relatório divulgado nesta terça-feira.
O enorme sistema de instalações inclui escolas militares, centros médicos, escolas e universidades civis, campos e sanatórios, entre outros tipos de estruturas. Os detalhes sobre a forma como milhares de crianças ucranianas que Kiev diz terem sido sequestradas pelas autoridades russas durante a invasão em larga escala estão a ser sujeitas a programas de “reeducação” figuram no relatório elaborado pelo Laboratório de Investigação Humanitária da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de Yale, nos EUA.
O grupo de investigação recorreu a informações de acesso aberto disponíveis em fontes russas, combinando-as com a análise de imagens de alta resolução captadas por satélites e cruzou-as com testemunhos. O relatório com o título “As crianças ucranianas roubadas: dentro da rede russa de reeducação e militarização” representa a descrição mais aprofundada dos esforços russos para manter milhares de crianças que a Ucrânia diz terem sido levadas contra a sua vontade e a dos seus pais.
“Aquilo que temos aqui é uma rede sem precedentes de instalações expressamente construídas e expandidas desde 2014 para tornar as crianças ucranianas em russas”, disse ao Guardian o director do centro responsável pelo relatório, Nathaniel Raymond.
O sistema montado pela Federação Russa é descrito por Raymond como uma “linha de produção para que as crianças ucranianas sejam reeducadas, sujeitas a lavagem ao cérebro e transformadas em soldados”. Os autores do estudo alertam para a criação de “cicatrizes geracionais” deixadas nas crianças sujeitas a estes crimes.
O relatório refere a existência de pelo menos 210 instalações deste género localizadas em toda a Rússia e em alguns territórios ocupados na Ucrânia. Em pelo menos 130 destes locais foram identificadas actividades de reeducação de crianças ucranianas sujeitas a actividades de promoção cultural, patriótica e militar “alinhadas com as narrativas pró-russas”.
Em quase um quinto destes centros foi confirmada a existência de formação militar forçada, incluindo treino de combate e pára-quedismo, além de participação em linhas de montagem para a produção de equipamento militar, tais como drones.
Apesar da grande quantidade diferente de tipos de centros usados para manter crianças ucranianas em território russo, cerca de metade é directamente gerida pelo Estado federal ou pelas autoridades locais.
Milhares de crianças
Os autores do relatório reconhecem que não conseguiram discernir a quantidade de crianças ucranianas que terão passado por estes centros, mas estima-se que seja na ordem dos milhares. Em estudos anteriores, o Laboratório de Investigação Humanitária tinha referido que pelo menos 19.500 crianças ucranianas foram deportadas à força para a Rússia, tendo sido enviadas para estes campos ou adoptadas por famílias russas.
O Governo ucraniano estima, no entanto, que o número real poderá ser consideravelmente mais elevado. Em 2023, o Tribunal Penal Internacional emitiu mandados de detenção para o Presidente russo, Vladimir Putin, e para a comissária para os Direitos das Crianças, Maria Lvova-Belova, pela acusação do rapto e deportação de crianças ucranianas.
O Kremlin tem rejeitado essas alegações, afirmando que o envio de menores para a Rússia se deveu a razões de segurança e que nenhum foi levado à força.
Nos locais identificados pelo relatório, convivem tanto crianças russas como ucranianas e ambas participam geralmente nas mesmas actividades.
Os autores referem quatro contextos para a presença de crianças ucranianas nesta rede, que vão desde crianças inscritas em campos de férias organizados por entidades alinhadas com a Rússia; crianças levadas de orfanatos ucranianos; crianças retiradas à força dos pais em zonas da linha da frente e crianças sequestradas pelas autoridades russas nos campos montados em torno de Mariupol na Primavera de 2022.
Os investigadores concluem que a deportação forçada de crianças pela Rússia constitui “uma violação grave do direito internacional humanitário, na forma de crimes de guerra e de crimes contra a humanidade”, além de atentar contra a Convenção da ONU para os Direitos das Crianças no que respeita à “protecção dos direitos das crianças de preservar a sua identidade nacional e cultural, os laços familiares e o seu estatuto de protecção durante conflitos armados”.