A primeira coisa a fazer com Luta de Classes, o novo filme de Spike Lee, talvez seja refletir sobre esse seu título em português. Para começar, ele nada tem a ver com o título original (Highest 2 Lowest) e muito menos com o famoso conceito marxista que seria o “motor da História”. Tanto o filme de Kurosawa quanto o de Spike Lee têm origem comum – o romance do norte-americano Ed McBain, King’s Ransom (1959).
Lee faz uma versão imaginada, ou reinventada como ele diz, de um dos clássicos de Akira Kurosawa, um primor de obra em preto-e-branco que aqui levou o título de Céu e Inferno (1963) e, nos Estados Unidos, de High and Low. Sim, no centro da história temos algo que sugere a questão da diferença entre classes sociais.
Na contramão da sobriedade de Kurosawa, Lee joga muita cor e som em sua leitura da obra de McBain. O filme começa com um passeio aéreo sobre uma Manhattan de sonho, ao som da canção Oh, What a Beautiful Mornin’, que vai dar na magnífica cobertura de um rei do pop, convenientemente chamado David King, e vivido por Denzel Washington. É o quinto filme de Denzel com Spike – os mais notáveis, a meu ver, são Malcolm X e Mais e Melhores Blues.
Em sua cobertura, saudando a manhã e desfrutando da vista que dela se descortina, King discute negócios. Talvez vender sua parte na gravadora que domina para se dedicar ao que sempre gostou e soube fazer – descobrir novos e lucrativos talentos para o pop. Ele é considerado o “ouvido de ouro” do mercado, abrindo caminho e lucrando muito com iniciantes de futuro brilhante.
O, digamos assim, prólogo do filme, dedica-se à apresentação de King e sua família. A bela e inteligente mulher, Pam (Ilfenesh Hadera), o filho amoroso e paparicado, Trey (Aubrey Joseph). A penthouse maravilhosa, a família ideal, o amigo, hoje seu motorista e colaborador fiel, Paul (Jeffrey Wright). Os filhos de ambos são melhores amigos e jogam basquete na mesma escola.
O motor da trama reside num equívoco, quando um dos rapazes é confundido com o outro por sequestradores. Um resgate milionário é exigido. O pai rico já tinha se conformado em pagar uma fortuna para resgatar o filho quando descobre que o sequestrado é, na verdade, Kyle (Elijah Wright), o filho do motorista. Vai pagar (e arruinar-se) para salvar o filho do outro? Estabelece-se um dilema moral. E dilemas morais costumam render boas histórias, desde que bem aprofundados. É o que acontece no filme de Kurosawa, mas menos no de Spike Lee.
Com seu talento cinematográfico inegável, Lee transforma seu Luta de Classes num thriller com momentos trepidantes. Cito uma sequência de fôlego, aquele momento crucial em sequestros, a troca do dinheiro do resgate pela pessoa sequestrada. Lee faz dela um tour de force, de arrepiar, um verdadeiro balé de oponentes, entre o metrô e superfície, entre a polícia e uma gangue afinada como orquestra sinfônica, tudo ao som de uma salsa frenética tocada por um grupo porto-riquenho.
Parece alusão a uma das sequências de perseguição mais famosas da história do cinema hollywoodiano, a de Operação França, de William Friedkin. Filme, aliás, citado mais de uma vez em Luta de Classes.
Cena de ‘Luta de Classes’, filme de Spike Lee estrelado por Denzel Washington Foto: Apple TV+/Divulgação
Se o ritmo pulsante expressa a arte de um mestre do cinema, seu lado, digamos, mais conceitual e formal deixa a desejar. Uma clara opção pelo exagero do tom e a entonação teatral dos diálogos deixa uma impressão de artificialidade na trama. Esse tom chega ao ápice no tenso diálogo entre King e o rapper (A$AP Rocky), que vem sob a forma de versos e réplicas.
Por outro lado, a força do enredo, que viria do dilema moral do protagonista (“devo empenhar minha fortuna para salvar a vida do filho de um outro?”) é logo esgotada. Kurosawa, em sua leitura do romance, estende essa corda até o limite, dando-lhe tensão máxima. Lee logo se desembaraça da questão, como se ela o atrapalhasse. Vai concentrar-se na relação com o sequestrador, e, agora sim, poderíamos ter alguma coisa parecida com a velha luta de classes. Mas a maneira como essa relação é desenvolvida também deixa a desejar.
Se no filme de Kurosawa, a relação do patrão (Toshiro Mifune) e seu motorista seria mesmo de soberba e abismo entre classes sociais, no de Lee, entre King e Paul, parece mais uma relação entre amigos e parceiros de vida. É um fator que atenua, mesmo quando entram em conflito de interesses.
Já o fato de King morar numa cobertura e o sequestrador num porão, explica o título inglês que alude ao “alto” e ao “baixo”, no fundo ao desnível na pirâmide social. Mas, neste caso, essa disparidade não dá ensejo à dialética da luta de classes mas a uma relação de poder e ressentimento. E que se resolve de maneira apaziguadora, ao menos para uma das partes da história – justamente a mais forte.
Esse filme de inegáveis qualidades cinematográficas parece sempre carente de alguma coisa, por mais que possamos nos envolver com ele em algumas de suas passagens. Brilha sem ter, de fato, uma alma a lhe insuflar vida. Ou uma inteligência interna que inspire reflexão. Suas contradições não são dialéticas, não dão um salto adiante. São apenas oposições, que podem ser resolvidas de uma maneira ou de outra e, no caso, pela aplicação de uma lei impessoal.
Mas vale ser visto, justamente pelo que tem a apresentar – espasmos episódicos de grande cinema. O filme estreou no Festival de Cannes fora de concurso e encontra-se disponível no serviço de streaming Apple TV+.