O escritor e professor de português do ensino médio Erick Bernardes tem uma mania curiosa: batizar seus livros com substantivos coletivos. Depois de “Panapaná” (coletivo de borboletas) e “Cambada” (coletivo de caranguejos), agora chega às livrarias “Boana: memória dos bairros de Niterói”. A escolha do título nasceu de uma lembrança de infância. Quando criança, Bernardes acompanhava o pai nas idas ao Mercado São Pedro.
— Ele sempre comprava manjubinhas fritas para mim. Meu pai teve problemas com alcoolismo, e esses eram alguns dos poucos momentos que tínhamos para conversar e nos conectar — recorda.
- Disputa pelos royalties do petróleo: após decisão do STF que beneficiou Niterói, São Gonçalo diz que mérito da questão ainda será julgado
- Clientes sem internet: Serviços são alvo de sabotagem em Niterói
Ao escrever o novo livro, Erick pensou em “cardume”, mas acabou convencido por um colega da Uerj a adotar “boana”, coletivo de peixes pequenos, como a manjubinha, uma metáfora para a multiplicidade de vozes que compõem a memória de uma cidade.
Segundo o escritor, “Boana” é um “mergulho afetivo em histórias oficiais e não oficiais”. Bernardes visitou arquivos, mas também subiu morros, ouviu moradores e colecionou relatos transmitidos de geração em geração. Um exemplo é o caso do Morro do Castro, dividido entre Niterói e São Gonçalo. Segundo ele, uma das antigas fazendas da região, a Fazenda Castro Alves, deu nome ao morro.
— Fui recebido com desconfiança por homens armados, do movimento, e um deles me perguntou se eu conhecia a Dona Peixe. Ele disse que ela já tinha falecido e que eu deveria ter conversado com ela antes, que ela era um arquivo vivo da comunidade. Eles viram minha foto na orelha do livro, e acabei sendo conduzido até os vestígios da antiga fazenda colonial. No fim da visita, que fiz escoltado, ele me disse que a Dona Peixe era tia dele — conta.
O livro revela curiosidades sobre a origem de bairros e sub-bairros da cidade. Cafubá, por exemplo, vem de uma raça rústica de boi nordestino, criada na região. Já Matapaca remete a antigas caçadas de paca. Há também os nomes de origem tupi, como Piratininga, que significa “lugar de peixe seco”; e Mocanguê, “lugar de carne tostada”, locais onde os indígenas salgavam e tostavam os alimentos.
Entre os relatos mais detalhados está o da Vila Pereira Carneiro, onde hoje se localiza a Rua Conde Pereira Carneiro, na Ponta d’Areia. O conjunto foi erguido no início do século XX para abrigar trabalhadores da Companhia de Comércio e Navegação, pertencente à família Pereira Carneiro. A empresa, dona de uma grande frota de cabotagem e de armazéns de sal, construiu também o dique Lahmeyer, na época considerado o maior da América do Sul, cavado em rocha e referência em engenharia naval.
Na vila operária, os empregados tinham acesso a casas higiênicas, médico, escola e até uma capela. Era um modelo raro de empreendimento industrial que combinava negócios e assistência social. Hoje, a Vila Pereira Carneiro é parte do patrimônio arquitetônico de Niterói e sobrevive como testemunho da importância econômica e cultural da região da Ponta d’Areia.
Para Bernardes, revisitar a história da vila e da rua é uma forma de trazer à tona personagens que moldaram a cidade, mas muitas vezes ficaram restritos a notas de rodapé em livros de economia e história.
— Quando uma rua leva o nome de um conde ou de um médico, há sempre uma história maior por trás. São essas camadas que interessam: a rua não é só endereço, é memória coletiva — afirma.
Esse olhar, que mistura a vida cotidiana com os grandes movimentos da cidade, percorre todo “Boana”. Da Vila Pereira Carneiro à origem indígena de bairros como Piratininga e Mocanguê, das histórias de pescarias em Gragoatá às lembranças de família no Mercado de São Pedro, Bernardes constrói um mapa afetivo de Niterói.
— Escrevo porque acredito que as memórias, grandes ou pequenas, fazem a cidade pulsar — resume o professor.
Em meio ao trabalho literário, ele se diverte com os mistérios da cidade. Bernardes prepara para o ano que vem um romance de ficção científica inspirado no enigmático “mistério das máscaras de chumbo”, ocorrido no Morro do Vintém em 1966, quando dois técnicos em eletrônica de Campos dos Goytacazes foram encontrados mortos, trajando ternos, capas de chuva e máscaras de chumbo em formato de óculos.
A inspiração veio de uma aluna, cuja tia-avó foi uma das crianças que presenciaram a retirada dos corpos.
— Ela misturava realidade e fantasia, e isso me deu o estopim para criar a narrativa de uma história paralela — revela.
Publicado pela Editora Apologia Brasil, “Boana” pode ser adquirido pelo Instagram do autor (@cambada123) ou na Livraria Niterói, na Rua Almirante Teffé 685, loja 3, no Centro.