Ainda é difícil quantificar com exatidão os efeitos das mudanças climáticas e ambientais na pele, mas indicadores mostram que esses fatores devem aumentar o risco de dermatoses. Segundo a plataforma AdaptaBrasil, atualmente cerca de 34% das cidades brasileiras enfrentam riscos relacionados à leishmaniose tegumentar americana. No cenário mais pessimista, o número pode chegar a 41% municípios até 2050.
O tema foi discutido no simpósio “A pele e o mundo”, realizado durante o 78º Congresso da Sociedade Brasileira de Dermatologia, que aconteceu de 3 a 6 de setembro no Rio de Janeiro.
“O aumento da temperatura leva a novas doenças e alterações naquelas já existentes. Os dermatologistas devem estar atentos a isso”, ressaltou o Dr. Vidal Haddad Júnior, que é médico e professor do Departamento de Saúde Pública da Faculdade de Medicina da Unesp de Botucatu. “A pele é o órgão que mais interage com o ambiente e, portanto, padrões de prevalência das dermatoses podem refletir mudanças ambientais. Tudo entra em contato primeiro com ela”, explicou ele ao Medscape.
Em sua apresentação, o médico abordou aspectos relacionados ao desmatamento, à urbanização e ao aumento da temperatura global e falou sobre como esses problemas influenciam a epidemiologia das doenças cutâneas.
Em relação ao desmatamento, ele explicou que, à medida que se reduzem (ou se desequilibram) os biomas e ocorre a extinção dos reservatórios naturais de certas doenças, o ser humano passa a ser envolvido em novos ciclos de patógenos e vetores. Como exemplos de epidemias que emergiram por conta desse desequilíbrio, ele citou a de malária no Brasil após a construção de ferrovias na região Norte do país.
Outro exemplo é a leishmaniose tegumentar americana. A descrição da doença ocorreu durante a construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, no início do século XX, que visava o escoamento da produção cafeeira do interior de São Paulo e Mato Grosso. “Toda essa área é rica em flebotomíneos, e a doença recebeu a denominação de ‘úlcera de Bauru’”, contou o Dr. Vidal.
A incidência de leishmaniose tegumentar americana vem aumentando nos últimos 30 anos. Dados de 2024 do Ministério da Saúde mostram que, apesar de Pará (54.567 casos), Bahia (38.739), Mato Grosso (35.947), Maranhão (26.821), Amazonas (26.099) e Minas Gerais (20.517) serem os estados onde há maior incidência, a doença está presente em todos os estados brasileiros, com surtos no Sudeste, Centro-Oeste, Nordeste e região Amazônica.
São Paulo e Rio de Janeiro aparecem com alto índice de risco para a ocorrência da doença, de acordo com a plataforma AdaptaBrasil, recurso criado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação que indica os níveis de ameaça climática e vulnerabilidade dos municípios em relação a doenças sensíveis ao clima, como malária, dengue e as leishmanioses (tegumentar e visceral).
A maioria dos casos está associada a construção de estradas, criação de novos núcleos populacionais e ampliação de atividades agrícolas e de pastagens. “O desflorestamento pode causar migração de agentes infecciosos para vetores e hospedeiros silvestres em áreas urbanas, favorecendo o aparecimento de doenças”, observou o Dr. Vidal.
É o caso da doença de Lyme. No Brasil, ela acomete cervídeos e capivaras que, ao se aproximarem de centros urbanos, podem transmitir a doença para animais domésticos e seres humanos.
O desmatamento também modifica o regime de chuvas, favorecendo a disseminação de focos de incêndio — como aconteceu recentemente no Pantanal — e a migração de animais selvagens e de vetores de doenças. “Assim, aumentam as chances da transmissão de zoonoses em áreas urbanas próximas às regiões incendiadas”, ressaltou o Dr. Vidal.
Como consequências das más condições de urbanização, o médico relatou o aumento da incidência do pênfigo foliáceo endêmico (ou fogo selvagem) — doença associada à picada de borrachudos — nas regiões Sudeste e Centro-Oeste, além das ectoparasitoses no Nordeste. “A prevalência da escabiose nas favelas da região atinge até 9% dos moradores, enquanto a pediculose pode afetar 43%”, relatou.
Segundo ele, entre os fatores diretamente implicados nas alterações da saúde cutânea estão o aumento das temperaturas globais e a intensificação de eventos climáticos extremos, como ondas de calor, enchentes e incêndios florestais.
De acordo com o Dr. Vidal, há clara sazonalidade nas doenças dermatológicas como a psoríase e a dermatite atópica, que variam suas taxas de acordo com a temperatura. “A psoríase apresenta menor prevalência no verão, devido à radiação ultravioleta. No inverno, ocorrem mais desbalanços imunológicos”, completou.
As mudanças bruscas nas condições ambientais também são agravantes para a dermatite atópica, que pode piorar com o frio e a baixa umidade, embora o calor extremo também possa intensificá-la, principalmente devido ao suor.
Dermatoses de viajantes
Uma ferroada na nuca seguida de dor intensa marcou a memória do dermatologista Dr. Gustavo Uzeda Machado em sua passagem pela cidade de Poitier, na França, onde havia sido convidado para apresentar um trabalho. Ao tocar a região da dor, não encontrou nada, apenas sentiu o inchaço. Um amigo francês o alertou que ele havia sido picado por uma vespa.
“A dor foi pior do que quando tive apendicite. Na mesma hora tomei quatro comprimidos de desloratadina, preocupado com a possibilidade de ter uma anafilaxia. Depois comecei a sentir dor de cabeça e então iniciei o paracetamol, que tomei por uns dois dias”, relatou ele durante sua palestra sobre dermatologia do viajante.
As mudanças climáticas têm provocado aumento na ocorrência de vespas na Europa. O clima mais quente, especialmente invernos mais amenos, permite que espécies invasoras — como a vespa asiática — se estabeleçam e se espalhem com mais facilidade pelo continente, o que representa uma ameaça às populações de vespas locais. Além disso, as espécies nativas têm se tornado mais agressivas devido às alterações do clima.
O Dr. Gustavo afirmou que problemas dermatológicos — como as reações inflamatórias na pele devido a picadas — estão entre os acometimentos mais comuns de viajantes: representam 40% deles, seguidos das síndromes diarreicas (25%) e das síndromes febris (19%). Os relatos incluem não só viagens a países tropicais.
Segundo ele, é importante não falar apenas de doenças do viajante relativas às pessoas dos países desenvolvidos que vão para zonas tropicais, mas coletar mais dados de viagens no sentido contrário.
“A maior preocupação é quando os viajantes vêm de lá para cá, já que têm medo de se contaminarem com doenças tropicais. Mas precisamos ficar atentos, porque o contrário também acontece”, afirmou o dermatologista ao Medscape. “Quando aconteceu essa picada de vespa, fiquei preocupado com o risco de anafilaxia, porque eu nunca tinha sido exposto a isso, mas a maioria dos europeus já foram. E realmente o risco [de anafilaxia] existe.”
Cerca de 9% da população europeia já apresentou alguma reação sistêmica a picadas de insetos himenópteros, como abelhas e vespas. Nos países europeus, as vespas são responsáveis por mais casos de anafilaxia do que as abelhas. A mortalidade por essas picadas varia de 0,03 a 0,48 mortes por milhão de habitantes no continente. “É preciso lembrar que a primeira documentação de [transmissão de] doenças foi da Europa para o Brasil. Quando o brasileiro viaja ao exterior também há risco de contaminação”, afirmou.
O Dr. Gustavo lembrou, contudo, dos riscos que o turista estrangeiro pode encontrar no Brasil. “A leishmaniose, por exemplo, não deixa de ser um risco para os viajantes de fora, porque muitas vezes eles vêm para fazer ecoturismo, trilhas e caminhadas, então ficam mais expostos.”
Na apresentação, o dermatologista fez ainda um alerta para os perigos da esporotricose. Segundo dados do Ministério da Saúde, em 2023 foram atendidos 1.239 indivíduos diagnosticados com a infecção, que é causada por fungos do gênero Sporothrix.
As mudanças climáticas impulsionaram a proliferação do fungo, que encontrou no Brasil condições favoráveis a uma possível epidemia, de acordo com artigo assinado por pesquisadores brasileiros. A doença é hoje a micose mais prevalente no mundo, sobretudo em zonas tropicais e subtropicais. Desde março de 2025, foi incluída na Lista de Notificação Compulsória do Ministério da Saúde.