O mundo divide-se, neste momento, em dois grandes grupos. Pessoas que (como eu, até recentemente) não fazem ideia de que raio são umas “Guerreiras do K-Pop” e provavelmente nem nutrem grande vontade de passar a fazer. E pessoas que (como muitos pais e mães que conheço) não sabem o que é outra coisa, coitados. A resposta curta é: Guerreiras do K-Pop (K-Pop Demon Hunters, no original) é um filme de animação da Netflix, classificado para maiores de 10 anos, que conta literalmente aquilo que diz no título — a saga de uma girl band de pop sul coreana, que esconde uma vida secreta na qual caça demónios. A resposta mais longa demora, obviamente, mais tempo a explicar, mas podemos para já focar-nos em três informações: é o filme mais visto de sempre na Netflix; tem uns invejáveis 96 por cento de aprovação no site de críticas Rotten Tomatoes; e as minhas redes sociais estão cheias de adultos, amiúde trintões sem filhos, completamente obcecados pelo filme.

Guerreiras do K-Pop conta a história das Huntrix, a banda de Rumi, Mira e Zoey. Além de serem as maiores estrelas da Coreia do Sul, têm uma vida dupla mais excitante que a da Hannah Montana: são caçadoras que usam o poder da música para ligar corações, criando uma barreira – a “Honmoon dourada” – que manterá afastadas do nosso planeta as forças do submundo dos demónios malignos. Tudo corre bem, até os demónios criarem a sua própria boy band dissimulada, os viciantes Saja Boys, com a capacidade de roubarem almas.

Tal como o recente Super Homem de James Gunn, o filme não é uma origin story, não apresenta uma explicação detalhada de como surgiram estas heroínas. Arranca antes com o trio no pico de forma e de fama, prestes a atuar para 50 mil pessoas e a nem pestanejar perante um avião privado cheio de demónios. A pista está logo na primeira canção, um resumo do quão à vontade estão em ambos os papeis, chamada How It’s Done — que eu posso ou não ter acrescentado à minha playlist do Spotify. Um dos trunfos de Guerreiras do K-Pop é mesmo de conseguir ter músicas que aludem à trama, mas sem deixarem de ser canções pop muito orelhudas.

[o trailer de “As Guerreiras do K-Pop”:]

Maggie Kang, criadora do conceito e co-realizadora (com Chris Appelhans), admitiu numa entrevista de promoção que a vertente do k-pop, ponto fulcral do sucesso do filme, foi o último ingrediente acrescentado. A ideia original era fazer uma homenagem à cultura coreana. E esse tributo está muito patente ao longo do guião e da estética. O nome “Huntrix” significa “Três Caçadoras”. O nome “Saja Boys” é um jogo de palavras coreano com duplo significado: “Saja” (사자) pode referir-se a um leão, símbolo de poder e coragem, ou a um mensageiro do além (ceifeiro da morte), fazendo referência ao Jeoseung Saja. Mais à frente no filme surge um enorme tigre azul mensageiro, acompanhado por um pombo de chapéu. Ambos são também símbolos nacionais: conhecidos como Hojak-do ou Jakhodo na arte popular coreana, representam um comentário satírico sobre as dinâmicas de poder. O tigre, com ar trapalhão, simboliza as figuras de autoridade tolas, enquanto o pombo, astuto, simboliza o povo comum que observa e critica.

A nível estético, Guerreiras do K-Pop também é mais do que parece quando passamos só pela imagem no menu da Netflix. Talvez por ser também uma banda, vieram-me imediatamente à cabeça os Gorillaz, criação do músico Damon Albarn e do autor de BD Jamie Hewlett, especialmente ali na fase do disco Plastic Beach. Rumi, Mira e Zoey são mais do que bonequinhas giras com ar de Bratz — são personagens expressivas, com detalhes de animação acima da média, algo desarrumadas. Um bom exemplo, que faz sucesso com miúdos e graúdos, é quando perante os rapazes jeitosos dos Saja Boys, os seus olhos transformam-se em maçarocas de milho (terão os coreanos também a expressão “bom como o milho”?) e depois em pipocas. Há uma clara tentativa de não fazer delas só estrelas pop sexy, mas também miúdas normais, divertidas — e o tipo de animação presta-se a essas subtilezas, não é chapa-quatro como tantos filmes que pais incautos são forçados a ver em loop. É aí que vem à memória a estética semelhante de Spider-Man: Into the Spider-Verse e desvenda-se parte do mistério: foram feitas no mesmo estúdio, a Sony Pictures Animation. Problema para a Sony — não percebeu a tempo que tinha um sucesso em mãos.