Uma nova diretriz brasileira determina que todos os adultos entre 30 e 79 anos com sobrepeso ou obesidade, ainda que sem doença cardiovascular prévia, devem ter a sua condição cardiovascular avaliada por meio do escore PREVENT, uma ferramenta de cálculo internacional que estima a probabilidade de infarto, acidente vascular cerebral (AVC) e insuficiência cardíaca nos dez anos seguintes.
A partir dessa avaliação, os pacientes passam a ser classificados em risco baixo, moderado ou alto para eventos cardiovasculares, além da categoria de alto risco específica para insuficiência cardíaca. Essa categorização orientará o tipo e a intensidade do tratamento a ser indicado.
O documento reforça a mudança no olhar sobre a doença e seu tratamento. Pelo novo paradigma, o tratamento da obesidade deixa de se apoiar apenas no índice de massa corpórea (IMC) e passa a considerar o risco real de complicações. Agora, além do peso, os médicos devem considerar se o paciente fuma, tem diabetes, doença renal, hipertensão, dislipidemia, insuficiência cardíaca, entre outros riscos.
Risco cardiovascular em pessoas com obesidade ou sobrepeso passa a ser avaliado também em quem não possui histórico de problema cardíaco Foto: Freepik
A Diretriz Brasileira para Tratamento da Obesidade e Prevenção de Doenças Cardiovasculares e Complicações Associadas 2025 foi divulgada nesta sexta-feira, 19, pela Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica (Abeso), ao lado da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), da Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD) e da Academia Brasileira do Sono (ABS). O documento foi publicado na revista internacional Diabetology & Metabolic Syndrome.
Essa é a primeira diretriz brasileira voltada para o tema e “representa um marco na prática clínica” ao propor que todo paciente adulto com sobrepeso ou obesidade tenha seu risco cardiovascular avaliado de forma padronizada e criteriosa, afirma a Abeso.
Na prática, passa a ser possível avaliar melhor os diferentes perfis, como um paciente com IMC elevado, mas risco cardiovascular relativamente baixo ou um paciente com sobrepeso, porém alto risco cardiovascular.
“O escore PREVENT e a avaliação clínica permitem diferenciar esses perfis e oferecer o tratamento mais adequado para cada caso”, explica o endocrinologista Marcello Bertoluci, coordenador do Departamento de Cardiometabolismo da Abeso e um dos autores do documento.
Essa mudança “desloca o olhar do peso isolado para o risco real de complicações, permitindo uma abordagem mais precoce, assertiva e baseada em evidências”, acrescenta a endocrinologista Cynthia Valério, também uma das autoras do documento.
A obesidade não é apenas um fator de risco, destaca a diretriz, mas uma doença que influencia ativamente o desenvolvimento de complicações cardiometabólicas, ou seja, problemas que envolvem tanto o metabolismo quanto o coração. Isso porque a condição está diretamente associada a complicações como diabetes tipo 2, insuficiência cardíaca, infarto, AVC e morte cardiovascular.
Insuficiência cardíaca
O documento também traz orientações sobre a triagem de insuficiência cardíaca e alerta para a interpretação diferenciada de exames laboratoriais como NT-proBNP ou BNP. Esses marcadores, liberados pelo coração quando há maior esforço para bombear o sangue, costumam ser usados como sinal de alerta para risco de insuficiência cardíaca.
Em pessoas sem obesidade, valores de NT-proBNP acima de 125 pg/ml são considerados relevantes. Já em pacientes com obesidade, especialmente com IMC acima de 35, a diretriz orienta que esse ponto de corte seja reduzido para cerca de 50 pg/ml, a fim de evitar subdiagnósticos e garantir maior precisão no reconhecimento precoce da doença.
Quanto peso perder?
Outro destaque da nova diretriz é a definição de metas claras de perda de peso. Uma redução de pelo menos 5% já traz benefícios metabólicos concretos, como melhora da pressão arterial e do perfil lipídico.
Quando possível, uma perda de 10% ou mais deve ser buscada em pacientes com risco moderado ou alto, pois está associada à redução de eventos cardiovasculares em longo prazo.
Essas metas são fundamentadas em estudos clínicos que comprovam o impacto direto na saúde do coração e na qualidade de vida, dizem os autores do documento, e sua aplicação deve ser individualizada.
“É fundamental que os médicos entendam que nem todos os pacientes precisam de metas agressivas. A redução de 5% do peso corporal já traz ganhos importantes, enquanto a de 10% reduz a chance de eventos cardiovasculares no longo prazo”, reforça Valério.
Papel de canetas como Ozempic
As novas terapias farmacológicas para o tratamento da obesidade também aparecem com destaque na nova diretriz e passam a ser incorporadas como parte da gama de recursos terapêuticos quando o risco cardiovascular é elevado.
Elas são recomendadas também para pacientes com sobrepeso (IMC entre 25 e 30), desde que tenham cintura aumentada (medida pela relação entre a circunferência da cintura e a altura) e uma ou mais comorbidades, como hipertensão e diabetes.
O documento menciona os resultados de estudos como o SELECT (Efeitos da Semaglutida em Doenças Cardíacas e AVC em Pacientes com Sobrepeso ou Obesidade), publicado em 2023 na revista científica The New England Journal of Medicine. A pesquisa demonstrou que a semaglutida (princípio ativo do Ozempic e do Wegovy), na dose de 2,4 mg, reduziu em cerca de 20% a ocorrência de eventos cardiovasculares maiores (infarto, AVC e morte cardiovascular) em pessoas com sobrepeso ou obesidade sem diabetes. Foi a primeira vez que uma medicação para obesidade mostrou esse impacto em desfechos clínicos.
A diretriz também afirma que a tirzepatida (do Mounjaro) apresenta resultados consistentes na perda de peso e evidências crescentes em benefício cardiovascular.
“Com essas novas opções terapêuticas, nós temos agora uma opção de reduzir o risco (para o coração) ao reduzir mais peso, em torno de 10%, e também uma ação específica dessas moléculas na parte cardiovascular”, diz Bertoluci.
Para Bertoluci, a incorporação dessas evidências representa uma mudança de paradigma: “O estudo SELECT foi um marco, porque pela primeira vez uma medicação voltada para o tratamento da obesidade mostrou redução expressiva de desfechos cardiovasculares em pessoas sem diabetes”.
“Os novos dados de tirzepatida reforçam que estamos diante de terapias que não apenas promovem perda de peso, mas alteram a história natural da doença, modificando risco e prevenindo complicações”, acrescenta o endocrinologista.
Essas medicações ainda têm custo elevado e acesso restrito no Brasil, pondera a diretriz, motivo pelo qual recomenda que sejam priorizadas em pacientes com maior risco cardiometabólico, para os quais o benefício tende a ser mais expressivo.
Pacientes com sobrepeso, cintura aumentada e uma ou mais comorbidades podem se beneficiar de canetas como Ozempic, indica diretriz Foto: grinny/Adobe Stock
Outros tratamentos
As canetas podem ser combinadas com inibidores de SGLT2 (medicamentos orais com princípio ativo como dapagliflozina, empagliflozina, canagliflozina e ertugliflozina) em determinados perfis de risco, ampliando as possibilidades de intervenção.
Por outro lado, a sibutramina, medicamento usado para obesidade, deve ser evitada em casos risco cardiovascular, pontua a diretriz. “Teve um estudo, há alguns anos, que mostrou aumento de mortalidade com o uso da sibutramina em pessoas de alto risco cardiovascular. Esse estudo foi decisivo para se colocar essa observação. É uma medicação que acelera o coração, pode dar arritmia, e pessoas propensas podem desenvolver eventos cardiovasculares”, explica Bertoluci.
Independentemente do risco cardiovascular, para todos os indivíduos com sobrepeso ou obesidade é indicada a mudança do estilo de vida, com dieta saudável e prática de exercícios físicos.
Prevenção
A atenção primária tem papel fundamental para prevenir eventos cardiovasculares, enfatizam os autores da diretriz. Reconhecer a obesidade como doença crônica e integrá-la às estratégias de prevenção precoce é a forma mais custo-efetiva de reduzir internações, complicações e mortes.
“Prevenção primária é onde está o maior impacto clínico e econômico, porque impede o primeiro evento e reduz drasticamente o custo social e financeiro da obesidade não tratada”, afirma Bertoluci.
No Brasil, 68% da população adulta tem sobrepeso (IMC acima de 25) ou obesidade (IMC acima de 30), segundo estimativas do Atlas Mundial da Obesidade 2025, publicado pela Federação Mundial da Obesidade. Em 2021, mais de 60 mil mortes prematuras no País foram atribuídas a doenças crônicas relacionadas ao excesso de peso.