Daí que, segundo o MP, Ricardo Salgado tenha sentido necessidade de recrutar “um núcleo estratégico de colaboradores que, a troco de contrapartidas em dinheiro e poder de influência, se dispôs a pactuar com os seus desígnios” violando para o efeito os seus “deveres de profissionais”, lê-se na acusação. Como? Primeiro com a falsificação da contabilidade e, numa segunda fase, com a criação de um sistema de financiamento fraudulento.
Na ótica da acusação do MP, uma coisa (a falsificação da contabilidade) e a outra (o financiamento fraudulento) estão intimamente ligadas. Mas Francisco Machado da Cruz tem outras razões.
Juíza Helena Susano (HS): O sr. dr. não sabia porque é que alterava as contas? O sr. dr. é um homem inteligente… não sabia para que é estava a alterar as contas?
Francisco Machado da Cruz (FMC): Porque o dr. Ricardo me pedia. Muitas vezes…
HS: Para quê? Não é porquê. É para quê? Não tinha nada a ver com a emissão de dívida?
FMC: Não… Não… ó sra. dra. juíza, o Grupo Espírito Santo emitiu e reembolsou dívida ao longo de anos e anos… não, as contas não foram alteradas por causa da emissão de dívida…. A preocupação do dr. Ricardo era a família e o equilíbrio familiar. (…)
HS: O sr. dr. é que diz: ‘Isto é um crime! É um crime! É um crime!’ Então ele [Ricardo Salgado] também tinha consciência… (…) Isto é como assaltar uma loja…. Só que não é apanhado.
FMC: “Ó sra. dra. juíza não compare isto com um assalto a loja… porque, de facto, eu fiz com a melhor das intenções.”
HS: Mesmo com a melhor das intenções, praticam-se actos ilícitos, mas não há nada que exclua a ilicitude com a intenção… nem o Robin dos Bosques…
FCM: Estamos de acordo… fi-lo para ajudar o GES… senão, eu descarregava a bomba atómica… e então aí é que todos os clientes perdiam o dinheiro… 25 mil postos de trabalho iam ao ar…. 150 anos de tradição do GES iam ar….
HS: Está a descrever o que aconteceu em agosto de 2014…. Está a dizer que ia tudo ao ar, ia tudo ar… e foi mesmo.
FCM: E foi, infelizmente. Quem não se sente, não é filho de boa gente. E eu sinto!” (…)
A juíza presidente Helena Susano apostou em vários momentos tentar perceber a motivação para falsificação as contas da ESI, tentando perceber se havia alguma ligação com a emissão de dívida da ESI e de outras sociedades do GES. Mas Machado da Cruz não desistiu da sua ideia original: uma coisa nada tinha a ver com a outra. E até comparou o marca Espírito Santo com a Coca Cola.
Juíza Helena Susano (HS): Sr. dr… o que está a dizer é que é irrelevante a saúde das contas do GES para a emissão de dívida. Porque, independentemente da saúde dessas contas, qualquer pessoa investiria por a marca Espírito Santo estar por detrás — e essa marca não cairia nunca porque era a marca Espírito Santo, ainda que as contas aparecessem com alguns problemas… para não falar muitos.
FCM: Quem tem literacia financeira, sra. dra. juíza … o Grupo Espírito Santo era a Coca Cola em Portugal. Se eu for comprar uma ação da Coca Cola… ninguém vai ler as financial statements [demonstrações financeiras] da Coca Cola. Vai comprar porque é a Coca Cola.
HS: Quando diz ninguém…
FCM: Investidores institucionais que põem biliões na Coca Cola ou que subscrevem o aumento do capital…
HS: Nós já ouvimos aqui várias pessoas a dizerem… se soubesse do estado das contas, não teriam investido nos produtos financeiros do GES.
FMC: Ouvi pelo menos um caso… Mas é tão fácil quando a pessoa é uma testemunha sobre o que aconteceu há 12 ou 13 anos…
HS: Mas o sr. investiria numa empresa que tivesse dificuldades… com a corda no pescoço?
FMC: Ó sra. dra. juíza, se a Caixa Geral de Depósitos se tornar privada, eu posso chegar e comprar a Caixa, Sem olhar para o financial statements [demonstrações financeiras] da CGD. Como sou capaz de comprar hoje uma ação da Coca Cola… Tenho que contar o que me vai na alma… As contas da ESI, como estavam, não serviam de artifício para emitir dívida. Era a família Espírito Santo que permitiria emitir divida”.
Regressando ao processo de falsificação das contas — que Francisco Machado da Cruz confessou, mas na ótica de um único crime de falsificação de documento (que nunca será punido, como escrevemos acima). Há um pormenor no interrogatório de Francisco Machado da Cruz que ganha relevância histórica.
Primeiro o contexto: além da ser escondida a verdadeira dívida que a ESI tinha para com os clientes (institucionais e particulares) que subscreviam o seu papel comercial, o MP entende que Ricardo Salgado também terá ordenado a Francisco Machado da Cruz que omitisse a dívida que a ESI tinha para com a Caixa Geral de Depósitos e o BPI. Machado da Cruz contou uma reunião particular que teve com Ricardo Salgado a propósito deste último tema.
Francisco Machado da Cruz (FMC): Nunca mais me esqueço. O dr. Ricardo chamou-me e disse-me: ‘Tive um sonho mau. Você tem de repor o passivo da CGD e do BPI nas contas [da ESI]. Tenho muito medo que o Fernando Ulrich [presidente executivo do BPI], pá… — não o senhor da Caixa Geral de Depósitos — mas o que o Ulrich diga que o BPI ‘não está cá’, não está contabilizado nas contas da ESI’. Eu disse-lhe: ‘Ainda bem que teve um sonho mau, dr. Ricardo. Isso não faz sentido. Já não me sinto bem. Já me sinto… Não estou à vontade. E ele dizia-me: ‘Ó pá, não largue o barco… o marinheiro não larga o barco’. ‘Ó dr. Ricardo… eu fiz serviço militar mas não foi na Marinha’. ‘Ó pá, não largue o barco… Temos de ir até bom porto.’. ‘Ó dr. Ricardo, já me está a pedir demasiado… Isto é horrível!.