Ao fim de mais de duas décadas de negociações, ei-lo: o Tratado do Alto-Mar, formalmente conhecido como Acordo sobre Protecção da Biodiversidade Marinha em Áreas para além da Jurisdição Nacional (BBNJ, na sigla em inglês), alcançou na noite de sexta-feira o marco de 60 ratificações necessárias para desencadear a sua entrada em vigor.

Trata-se do primeiro acordo internacional juridicamente vinculativo a proteger a vida marinha em águas internacionais, um marco histórico na protecção global do oceano que vem colmatar lacunas jurídicas na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS), frequentemente descrita como a “constituição do oceano”.

A directora da coligação High Seas Alliance, Rebecca Hubbard, descreve o momento como “um poderoso testemunho do multilateralismo”, fruto de anos de diplomacia global. A entrada em vigor é descrita por Tiago Pitta e Cunha, administrador executivo da Fundação Oceano Azul (FOA), como “uma vitória histórica para o nosso planeta”, sublinhando que o tratado permitirá à humanidade proteger uma área que corresponde a quase metade do nosso planeta.

Duas décadas de diplomacia

A trajectória do Tratado do Alto-Mar começou em 2004, com a criação de um grupo de trabalho pela Assembleia Geral das Nações Unidas. Depois de falhar a adopção durante a 2.ª Conferência do Oceano das Nações Unidas, em Lisboa, o Tratado acabou por ser adoptado em Junho de 2023, abrindo para assinatura a 20 de Setembro de 2023. Palau tornou-se o primeiro país a ratificar o documento, em Janeiro de 2024. Portugal formalizou a ratificação apenas em Maio deste ano.

Em Junho de 2025, no início da 3.ª Conferência do Oceano (UNOC3), em Nice, França, apenas 32 países tinham ratificado o Tratado, frustrando as expectativas francesas de alcançar este marco simbólico durante a conferência.

Na sexta-feira, às vésperas da 80.ª Assembleia Geral das Nações Unidas, as 60 ratificações foram atingidas com a ratificação de quatro novos países – Sri Lanka, São Vicente e Granadinas, Serra Leoa e Marrocos –, iniciando um período de 120 dias para o Tratado entrar em vigor, ou seja, em 17 de Janeiro de 2026​. A primeira Conferência das Partes (COP1) está, assim, prevista para o final de 2026.

O desafio agora é tornar o tratado o mais universal possível. Até hoje, 142 países, incluindo a União Europeia, já assinaram o acordo, sinalizando a sua intenção de ratificar. Há, contudo, duas potências marítimas que continuam de fora: os Estados Unidos, que o assinaram sob Joe Biden mas não devem ratificar sob Donald Trump, e a Rússia, que rejeitou o texto por considerar alguns elementos “inaceitáveis”.

Proteger as “águas de todos e de ninguém”

O alto-mar começa onde terminam as zonas económicas exclusivas dos Estados — até 200 milhas náuticas (370 km) das costas — e representa mais de metade da superfície do planeta, sem estar sob jurisdição nacional. Essas áreas continuam praticamente sem regulamentação, sendo descritas por Katie Matthews, cientista-chefe da organização internacional Oceana, como um “faroeste” que carece de supervisão. O novo tratado trará, assim, uma base legal para proteger a biodiversidade em águas que “pertencem a todos e a ninguém ao mesmo tempo”.

O Acordo BBNJ traz um novo enquadramento jurídico em matéria de criação e gestão de Áreas Marinhas Protegidas, avaliações de impacto ambiental (AIA) para projectos ou a regulação do acesso e partilha de benefícios dos recursos genéticos marinhos.

Actualmente, apenas cerca de 1% do alto-mar está protegido. Segundo a Greenpeace Internacional, para cumprir a meta de 30% até 2030, os governos terão de proteger mais de 12 milhões de km² por ano — uma área superior à do Canadá. Governos e organizações já estão a desenvolver propostas de AMP para proteger zonas prioritárias assim que o tratado estiver operacional. Entre as áreas prioritárias estão os montes submarinos Salas y Gómez e Nazca, o Mar de Sargaço e o Domo Térmico no Pacífico Oriental.

Sérgio Carvalho, director-adjunto para Assuntos Internacionais da Fundação Oceano Azul, sublinha que estabelecer AMP no alto-mar é uma acção urgente para atingir a meta global de proteger 30% do oceano até 2030, uma meta assumida em Dezembro de 2022 com a aprovação do Quadro Global da Biodiversidade​. Espera-se que as primeiras AMP em alto-mar possam ser adoptadas entre o final de 2028 e o início de 2029.

Desafios geopolíticos

Tiago Pitta e Cunha, da Fundação Oceano Azul (FOA), ​acredita que o Tratado do Alto-Mar terá um impacto semelhante ao da UNCLOS, que, apesar de nunca ter sido ratificada pelos EUA, é hoje considerada de aplicação universal. Deixa, contudo, um alerta: o novo tratado cobre apenas a coluna de água e superfície, ficando de fora o solo oceânico — onde pode ocorrer mineração em mar profundo —, o que pode gerar conflitos, caso uma área protegida coincida com zonas de exploração.

O responsável da FOA elogia ainda o papel de Portugal na protecção marinha, destacando os compromissos assumidos e a expansão das AMP, como a iminente classificação de 100 mil km² no banco de Gorringe e a criação de uma Área Marinha Protegida de Iniciativa Comunitária (AMPIC) envolvendo os municípios de Cascais, Mafra e Sintra. Com estas medidas, Portugal aproxima-se da meta de proteger 30% da sua área marinha até 2030.

Desde 2019, a FOA tem apoiado activamente o processo de negociação e implementação do Acordo BBNJ, organizando workshops com especialistas e negociadores. Após a adopção do Tratado do Alto-Mar, o foco passou para acelerar a ratificação, especialmente entre os países da CPLP. Quatro dos nove Estados-membros já ratificaram: Portugal, Guiné-Bissau, Timor-Leste e Cabo Verde.