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A presidente do Banco Central Europeu, Christine Lagarde.
A proposta é defendida pelo BCE como uma forma de preservar a independência europeia numa altura em que o dinheiro em numerário está a cair em desuso. No entanto, os bancos e vários países são contra a ideia.
Os decisores políticos europeus estão a enfrentar um lobista excepcionalmente assertivo: o Banco Central Europeu (BCE). Em causa está o futuro do euro digital, uma proposta de versão eletrónica da moeda única da UE que fez soar os alarmes entre bancos, grupos industriais e políticos conservadores.
O debate está a intensificar-se à medida que os Estados-membros da UE trabalham para chegar a acordo sobre a conceção do projeto até ao final do ano, com previsões para que o Parlamento Europeu inicie as negociações formais este outono.
Para o BCE, a questão é existencial: sem um equivalente digital ao dinheiro, o banco teme perder o controlo monetário numa era em que as notas físicas estão a desaparecer e os pagamentos são dominados pelas empresas de cartões de crédito americanas e da big tech.
O regulador considera que a dependência da zona euro da Visa, da Mastercard e, potencialmente, de gigantes tecnológicos como a Apple ou a Meta deixa a Europa vulnerável a pressões externas, especialmente com o regresso de Donald Trump à Casa Branca e o seu apoio às stablecoins — tokens de criptomoedas ligados ao dólar norte-americano. Ao contrário de criptomoedas voláteis como a Bitcoin, as stablecoins oferecem uma alternativa digital viável ao dinheiro tradicional e podem prejudicar o papel do euro nos pagamentos internacionais.
O que é o euro digital?
O euro digital funcionaria como uma moeda com curso legal, emitida diretamente pelo BCE, com o mesmo valor do dinheiro físico. Os cidadãos armazená-lo-iam em carteiras digitais para smartphones, em vez de em contas bancárias comerciais. Ao contrário dos depósitos bancários, que são em grande parte emprestados, cada euro digital ficaria em segurança nos registos do BCE, tornando-o imune a falências ou roubos bancários.
A principal diferença entre este sistema e os pagamentos digitais já existentes é que o euro digital seria uma moeda digital legal emitida pelo banco central que, em teoria, não requer o envolvimento de um banco comercial, explica o Politico.
Os pagamentos seriam mais simples e rápidos: os euros digitais poderiam ser transferidos instantaneamente de uma carteira para outra sem intermediários como bancos ou operadores de cartões. Na prática, porém, os bancos estariam ainda envolvidos na distribuição, embora o seu domínio nos pagamentos fosse reduzido.
Bancos e políticos opõem-se
A proposta não foi bem acolhida por todos. Os bancos alertam que o euro digital pode drenar os depósitos, aumentando o risco de corridas bancárias, além de os sobrecarregar com o custo de novas infraestruturas. Alguns decisores políticos temem que o BCE esteja a exagerar, criando “uma solução à procura de um problema” que pode sufocar a inovação privada nos pagamentos.
Os parlamentares europeus fizeram eco destas preocupações. O eurodeputado espanhol Fernando Navarrete, que lidera as negociações do Parlamento, classificou o projeto como “um último recurso” e até “uma ameaça nuclear“, sugerindo que o setor deve implementar um sistema de pagamentos transfronteiriços robusto antes que qualquer lei do euro digital seja finalizada.
As preocupações com a privacidade também são importantes. Embora o BCE insista que não irá monitorizar as transações, alguns governos, principalmente a Alemanha e os Países Baixos, exigem salvaguardas rigorosas contra a vigilância. A Bélgica alertou que não apoiará o projeto a menos que seja garantido o uso offline.
Apesar de ser uma criação do BCE, o euro digital não pode avançar sem aprovação política. Os Estados-membros do Conselho da UE estão a pressionar por poderes para limitar o montante de euros digitais que os particulares podem deter, na esperança de atenuar os receios dos credores. Também querem clareza sobre se os bancos receberão uma compensação pela distribuição da moeda.
O BCE, por seu lado, mudou de estratégia, trocando a sua habitual distância tecnocrática por um lobby prático. Ao longo de Setembro, o BCE está a organizar seminários para legisladores, seguidos da visita de Piero Cipollone, vice-presidente da instituição e principal defensor do projeto. O próximo grande teste terá lugar em Copenhaga, onde os ministros das Finanças e os banqueiros centrais da UE se reunirão no final deste mês.
Caminho por definir
Mesmo com estes planos para convencer os políticos, o calendário para o euro digital continua incerto. O Conselho pretende firmar a sua posição até ao final de 2025, mas o Parlamento não planeia chegar a uma posição final antes de maio de 2026. Se ambas as instituições aprovarem finalmente o plano, é pouco provável que os cidadãos utilizem euros digitais em pagamentos diários antes de 2028.
Até lá, o debate promete continuar aceso. Para o BCE, o euro digital visa salvaguardar a soberania monetária da Europa num mundo de declínio do dinheiro em numerário e de sistemas de pagamento controlados por estrangeiros. Para os céticos, trata-se de uma experiência não testada que corre o risco de desestabilizar os bancos, aumentar os receios em relação à privacidade e impor custos elevados.