A viagem interior que Sirât propõe, o seu desejo de transcendência, não são, contudo, gestos novos nesta obra: Oliver nunca escondeu nos filmes a prática de uma espiritualidade que cultiva na vida e que faz parte da sua criação artística. Mimosas já era estruturado em capítulos baseados nas posições da oração sufi (curvar, ficar de pé, prostrar-se). Em tempos desencantados, o cineasta sempre procurou na espiritualidade uma energia para reencantar o mundo — e que também acompanha as suas palavras na conversa que se segue.
Oliver Laxe (n. 1982) nasceu em Paris, filho de emigrantes galegos que voltavam todos os verões a casa nas férias, às montanhas da comarca de Os Ancares. A família reinstalou-se na região espanhola quando ele tinha 6 anos de idade, aos 18, depois dos estudos secundários na Corunha, mudou-se para Barcelona, depois Londres, em seguida Tânger, onde Todos vós sodes capitáns foi rodado. Laxe não frequentava o mundo do cinema quando o conheci em Cannes com o seu irmão Felipe Lage Coro (produtor na Zeitun Films), naquele Cannes 2010 de boa memória: foi o ano em que o júri presidido por Tim Burton deu a Palma de Ouro a O Tio Boonmee…, de Apichatpong Weerasethakul.
Graças a Todos vós sodes capitáns — um filme rodado em Tânger, a preto e branco, praticamente todo falado em árabe — começou então a falar-se em Cannes de uma nova vaga de cinema galego com representação internacional. A dita vaga não foi um fogo de palha. Continuaria a dar provas de vida ao longo do resto da década, até hoje. Mimosas seria também rodado em Marrocos seis anos depois, em pleno Atlas, com alegóricos ritos de passagem inspirados no Corão e em Paul Bowles.
No final da década passada, Laxe deixou Marrocos e reinstalou-se na Galiza. Foi na terra circundante à aldeia dos seus antepassados que filmou O Que Arde, o único filme que até agora se estreara em solo português. Pouco antes da pandemia, o cineasta tratou de recuperar a Casa Quindós, que herdou dos seus avós, em Vilela, Navia de Suarna, espaço que é hoje retiro de trabalho, residência de desenvolvimento de projectos cinematográficos e base da Associação Ser, assim chamada pela vizinhança com o rio do mesmo nome — uma plataforma sem fins lucrativos, destinada a proteger e dinamizar a ruralidade da região. A entrevista seguinte foi gravada presencialmente e por video-chamada, primeiro em Cannes, em seguida entre Vilela e Lisboa.
[o trailer de “Sirât”:]
Rodou em Marrocos duas longas-metragens. Sirât não seria o filme que é sem essa experiência, sem os reflexos da realidade de Tânger em Todos vós sodes capitáns e as viagens pelo Atlas de Mimosas. Queria começar pela sua atração por Marrocos porque Sirât não é o primeiro filme seu em que alguém se descobre nesse país a pedir ajuda, como Luis [Sergi López]. A certa altura, o realizador de cinema que interpretou em Todos vós sodes capitáns pedia igualmente auxílio, às pessoas, ao cinema. Marrocos abriu-lhe os horizontes. Tudo isto tem uma forte reverberação agora.
Luis pede auxílio, sim. Gosto dessa observação. E auxílio é uma boa palavra. Ainda não me tinha lembrado dela. A verdade é que busquei-me a mim próprio em Marrocos. Sou um bom espelho do filme. Cheguei ali com 23 ou 24 anos, vindo de uma geração que não teve muitos referentes, sobretudo espirituais. Ora Marrocos, com todas as suas contradições e paradoxos, tem uma transcendência forte. Encontrei ali valores que também existiam na minha família campesina galega. Quando fiz Todos vós sodes capitáns vivia em Tânger, Mimosas fez-me partir para sul, a viagem interior aprofundou-se. E o que achei foi alívio. Gente que estava mais apegada à emoção do que ao cognitivo. Gente que pronunciava a palavra de Deus com o coração. Isso deu-me muito ânimo. Aliviou-me. Queria fazer um filme religioso, lembro-me do meu irmão a resistir à ideia com um “Ouf, isso hoje em dia…”, mas bom, foi o que fizemos.
O rigor de fazer um filme dentro do sufismo, a partir da dimensão mística do Islão, e a minha própria busca pessoal eram coisas que estavam misturadas. Ao fazer Mimosas, perdi um pouco a noção da realidade. Não sabia ao certo se era um praticante, um monge, um anacoreta ou um cineasta. Vivia num palmeiral, no sul, na fronteira com o deserto. Estive ali quatro anos. A vida foi-me dizendo em seguida que o cinema era o meu caminho. De alguma maneira, a minha prática espiritual foi deixada de lado. Ou atacada de maneira tímida. A obra e o trabalho ganharam mais presença.
Depois do “western muçulmano”, como então chamou a Mimosas, voltou à infância na Galiza, à aldeia dos seus avós. Porquê?
Senti que precisava de enraizar-me mais. E de estimar a vida rural dos meus antepassados. Em O Que Arde filmei camponeses que conheço desde criança. E é aqui que quero estar agora. Mas Marrocos não se pode esquecer. Aliás, Sirât é um projecto que comecei a escrever logo a seguir a Capitáns. Quando nos conhecemos, já tinha o esboço do argumento. Já tinha imagens de camiões atravessando o deserto. Tinha ganas de deserto, por isso fui para lá viver, para mirar. A verdade é que, em Marrocos, sempre me impressionaram os Bedford, são veículos que continuam a ter relevância na paisagem do país. Marrocos é um choque de imaginários, de tempos. É como uma alucinação. Há ali algo de anacrónico que me parece inspirador. Também fiz uma viagem à Mauritânia muito importante para este filme. Foi na Mauritânia que filmei os caminhos de ferro e o comboio mais longo do mundo, que vai às minas de ferro. O Sirât vem muito disto, de imagens que, pouco a pouco, começaram a ficar mais definidas.
Teria conseguido fazer Sirât sem O Que Arde?
Não creio. Os meus produtores franceses e o meu co-argumentista, Santiago Fillol, sempre tiveram muito carinho pelo projecto mas Sirât era longo e caro. Exigia amadurecimento. Acontece que O Que Arde fez 120 mil espectadores e foi um pequeno êxito em Espanha para um filme à sua escala, ainda por cima falado em galego. Permitiu-me, por fim, ser reconhecido pela indústria do cinema espanhol. Até então eu não existia para eles. Era só aquele galego estranho que filmava em Marrocos e ia a Cannes. Continuava invisível para os investidores de Madrid e para os Prémios Goya.
O Que Arde, que já trazia um prémio de Cannes, arrecadou um par de Goyas. E de repente, fazer Sirât começou a tornar-se possível. Domingo Corral, então director de conteúdos da Movistar Plus+ [foi afastado do cargo este ano], propôs-me produzir o meu filme seguinte e, na cerimónia dos Goya 2019, conheci Pedro Almodóvar. Senti que se interessava por mim, que respeitava o meu trabalho. O Que Arde foi um filme de que ele gostou, por causa da maternidade, tema recorrente no seu cinema.
Sou um cineasta lento, não gosto de pressas. Depois da Covid, ao fim de tantos anos a escrever o guião com Santiago, senti que o texto estava maduro. Já com a garantia da Movistar Plus+, a primeira porta a que fui bater foi a da El Deseo [a produtora dos irmãos Almodóvar, Pedro e Agustín]. Um terceiro produtor juntou-se então porque as datas de rodagem de Sirât coincidiam com as de O Quarto ao Lado.