Morreu Claudia Cardinale, atriz franco-italiana nascida na Tunísia, aos 87 anos, em Nemours, na região de Paris. Era conhecida por ser a musa de cineastas como Luchino Visconti, Federico Fellini, Sergio Leone, Richard Brooks ou Henri Verneuil e famosa por muitos papéis no cinema europeu do século XX.

Cardinale era uma das últimas divas da idade de ouro do cinema europeu ainda vivas, protagonista de filmes como O Leopardo (1963), Oito e Meio (1963) e Era uma Vez no Oeste (1968), tendo participado em mais de 150 filmes.

“Ela deixa-nos o legado de uma mulher livre e inspirada, tanto como mulher como artista”, disse o seu agente, Laurent Savry, numa nota enviada à AFP.

A atriz, que entrou no filme do realizador português Manoel de Oliveira, Gebo e a Sombra, não só subjugou Visconti e Fellini, como encantou Delon, Belmondo e Mastroianni.

Numa entrevista à agência Lusa, quando esteve na Capital Europeia da Cultura Guimarães 2012 para a pré-estreia do filme O Gebo e a Sombra, obra que junta os dois decanos do cinema europeu, a “musa” de Manoel de Oliveira afirmou ter realizado um desejo “já antigo”, filmar com o realizador português, um homem que descreveu como sendo “extraordinário” e “cheio de energia”.

Três anos mais tarde, em 2015, numa reação à morte do realizador, Claudia Cardinale disse que Manoel de Oliveira “era um homem incrível, com uma cultura imensa e uma memória extraordinárias. Era realmente um amigo e um grande encenador. A mulher dele também é fabulosa, eles formavam um casal belíssimo”, acrescentou.

As ligações a Portugal não se reduziram a Manoel de Oliveira. A encarnação da beleza italiana foi homeanageada por Jorge Sampaio em 2001. Claudia Cardinale recebeu uma condecoração oficial das mãos do então Presidente da República, numa cerimónia no Teatro Rivoli, no Porto, na presença do crítico de cinema João Benard da Costa.

Nascida em La Goulette, perto de Túnis, a 15 de abril de 1938, filha de uma francesa e de um siciliano, Claude Joséphine Rose Cardinale falava francês, árabe e siciliano, mas foi no cinema italiano que começou. Apesar disso Cardinale admitiu que não falava esse idioma na sua autobiografia publicada em 2007.

“Tornei-me a heroína de um conto de fadas, o símbolo de um país cuja língua eu mal falava”, escreveu a atriz na sua autobiografia Minhas Estrelas, citada pela France 24. Até se tornar famosa em Oito e Meio, contou, a sua voz era dobrada em italiano. Mas Francesco Fellini, realizador dessa película, insistiu que Cardinale usasse a sua voz rouca, que se tornou icónica.

Selvagem e “maria-rapaz” na sua juventude, esta italiana da Tunísia, naturalizada francesa, tornou-se, sem querer, uma estrela de cinema internacional, premiada com um Leão de Ouro em Veneza, em 1993, e um Urso de Ouro em Berlim, em 2002.

“Ela é a única rapariga simples e saudável neste meio de neuróticos e hipócritas”, dizia dela Marcello Mastroianni na altura.

A atriz atuou no melhor do renascimento italiano (Bolognini, Zurlini, Squitieri), distinguiu-se em Hollywood (Edwards, Brooks, Leone), na França (Broca, Verneuil) e até na Alemanha, com Werner Herzog, e o seu maldito Fitzcarraldo.

“Tive a sorte de começar nos momentos mágicos do cinema. Todos os grandes cineastas foram meus mestres e eu, nunca tive de pedir nada a ninguém. Foram eles que me procuraram”, afirmou aos 74 anos na France Culture.

Aos 17 anos, num concurso de beleza, que venceu sem sequer ser candidata, virou a sua vida de pernas para o ar. “A mulher italiana mais bonita de Túnis” ganhou uma viagem ao Festival de Veneza onde causou sensação.

“Eu não queria fazer filmes. Era a minha irmã que queria. Mas insistiram tanto (…) que o meu pai desistiu”, confidenciou à France Inter. “Todos os realizadores e produtores queriam que eu fosse fazer filmes e eu disse-lhes: ‘Não, não quero’”, lembrou na sua autobiografia.

Com um contrato com o produtor Franco Cristaldi, torna-se uma figura do cinema.

Claudia Cardinale tinha apenas 22 anos quando Visconti a faz filmar em Rocco e os seus irmãos (1960). Ele faz com que ela pinte os olhos de preto e ensina-lhe o ofício.

A atriz irá segui-lo por todo o lado. Em O Leopardo, em 1963, deslumbra entre Burt Lancaster e Alain Delon. Em paralelo, filma outra obra-prima, Oito e Meio, de Fellini.

“Visconti, preciso, meticuloso, como no teatro, falava-me em francês e queria-me morena com cabelo comprido. Fellini, desorganizado e sem argumento, falava-me em italiano e queria-me mais loira, com cabelo curto. Estes são os dois filmes mais importantes da minha vida”, contou a atriz ao diário francês Le Monde.

Aos 23 anos, faz uma entrada estrondosa em Cannes com A rapariga da mala, de Zurlini, e O mau caminho de Bolognini. E chegam a confundi-la com uma Bardot morena. Dez anos mais tarde, “BB” e “CC” atuarão juntas na poeira em As Pétroleuses.

Reivindicada por Hollywood, onde recusa instalar-se, ela encanta os americanos em A pantera cor-de-rosa, depois em O maior circo do mundo, de Henry Hathaway, onde interpreta a filha de Rita Hayworth, ao lado de atores como Peter Sellars ou John Wayne. Em 1966, contracena com Rock Hudson, de quem ficou amiga até à morte do norte-americano, vítima da SIDA.

O napolitano Pasquale Squitieri, seu companheiro durante quase 30 anos, seu “único amor” e pai da sua filha Claudia, fez com que ela realizasse dez filmes de 1974 a 2011.

Na entrevista de 2012 à Lusa dizia querer trabalhar até morrer, como Manoel de Oliveira, mas sem olhar para trás.

“Não sou uma mulher nostálgica. Penso que se uma coisa não foi feita é porque o destino assim quis. Mas tenho sorte em continuar a trabalhar. Faço quatro filmes por ano”, dizia.

Não foram só luzes na vida de Cardinale. Em 1957, numa altura em que a sua carreira no cinema estava a começar, foi vítima de violação, ficou grávida e teve um filho, fruto daquele crime. Segundo o jornal Le Monde, Cardinale acabou por ser acolhida pelo produtor Franco Cristaldi, tratando o seu filho Patrick como se fosse seu irmão para não arriscar arruinar a sua carreira.

Numa entrevista de 2017 ao jornal Le Monde, a atriz diz que não teria chegado onde chegou no cinema sem o nascimento do filho, que a levou “a entrar para o cinema para ganhar a vida e ser independente”.

Foi por ele que eu o fiz. Pelo Patrick, esse bebé que eu quis manter apesar das circunstâncias e do enorme escândalo que um nascimento fora do casamento poderia causar na época”, acrescentou.

Cardinale viria a casar com Cristaldi em 1966, com quem viveu até se separar em 1975 e começar uma relação com Pasquale Squitieri, a quem chamou o “único homem da sua vida” que diz ter sido ela que “o escolheu”.

Em 2000, a atriz viria a ser nomeada embaixadora da UNESCO, devido à sua dedicação às causas sociais para melhorar o estatuto das raparigas e mulheres. Em 2017, a própria disse que a sua carreira no cinema lhe deu “uma infinidade de vidas”.

Tive a oportunidade de colocar a minha fama ao serviço de várias causas: os direitos das mulheres, porque sou feminista. Os direitos dos homossexuais, e eles sabem disso, pois saúdam-me sempre quando passam pelas minhas janelas durante a marcha do Orgulho Gay”, recordou, sublinhando ainda “a luta contra a SIDA e a pena de morte ao lado da Amnistia Internacional”.